quinta-feira, 17 de outubro de 2013

PECULIARIDADES DE SE SER EUROPEU

          
Aqui, repousando placidamente numa esplanada aberta a uma tão agradável tarde de início de Outono, não renego o pensamento que sublinha as peculiaridades que fazem deste país e da grande maioria das nações do velho continente locais deveras singulares e especiais. Todos os povos detém as suas características, é certo, e os portugueses, honestamente o digo, possuem traços bem particulares e distintos dos demais europeus. Contudo, não é sobre esse assunto que pretendo me debruçar. Afinal, encontro-me numa esplanada. E que outro local mais propício a ideias de união, sejam elas filosóficas, literárias ou musicais, poderá existir do que uma esplanada? A mera extensão do berço onde nasceram, outrora, tantos ideais que revolucionaram o continente e o próprio mundo?

De facto, a Europa das culturas criou-se em redor dos cafés. Desde A Brasileira, em Lisboa, onde Pessoa maturou as linhas do seu génio grandioso, ao famoso Café de la Paix (O Café da Paz), perto da Rue de la Paix (Rua da Paz), em Paris, onde o poeta canadiano Robert Service escreveu o poema “The Absinthe Drinker” (“O Bebedor de Absinto”). Ou o Café de Flore, por exemplo, onde por horas infindas Sartre e Beauvoir debateram as suas filosofias. E isto sem esquecer, de entre muitos outros, os cafés da Dinamarca onde Kierkegaard discorria e de Viena, na Áustria, onde certo dia um largo grupo de amigos se dispôs a escrever uma só sinfonia. É inevitável: na Europa citadina respira-se cultura!

Ainda que estes exemplos sejam partes de um passado, é importante compreender que novas ideias podem irromper de antigos berços. Neles, a mesma energia, a mesma atmosfera inspiradora e cativante ainda se faz sentir, quase que implorando por uma via de manifestação imediata. Impresso este dizer na folha branca e de pronto me assomem à memórias as palavras que George Steiner proferiu na sua iluminada palestra que se tornou o belíssimo ensaio “A Ideia de Europa”: «o café é um local de entrevistas e conspirações, de debates intelectuais». E isso é, em regra geral, um privilégio da Europa.

Por mais grandiosas que possam ser outras nações de outros continentes (tomemos o exemplo dos Estados Unidos da América), a verdade é que elas não desfrutam de tão peculiares características que, como antes referi, são o autêntico berço dos renascimentos culturais. É uma questão inata, mesmo, uma forma de abordar, em primeira instância, a concepção de uma cidade. Ao passearmos por Nova Iorque, no seio do seu alvoroço que é, simultaneamente, dinâmico e atraente, entre as luzes, os edifícios gigantescos e a constante noção de que tudo o que a compõe é altivo e, diga-se, enorme, visitamos a Quinta ou a Sétima Avenida, entre outras hipóteses. Em suma, ruas e mais ruas que sobriamente foram organizadas e nomeadas através de simples números. Existem excepções, é claro. Mas veja-se o caso europeu: as mesmas ruas, mais amplas ou mais estreitas, evocam o nome de poetas, romancistas, filósofos, dramaturgos, estadistas e até mesmo de grandes batalhas de outrora. São, indubitavelmente, locais onde a história está a ser constantemente revivida, mesmo que pouco ou nada saibamos sobre ela. E, como tal, numa espécie de simbiose cultural, esta não corre o risco de cair no olvido.

Se tal acontece na Europa é porque o velho continente é pródigo em acontecimentos marcantes que fazem a história de hoje, graças à sua evidente ancestralidade quando comparado, por exemplo, com o dito “Novo Mundo”. Mas essa característica não se torna obsoleta ou alvo de ataques jocosos. Muito pelo contrário! É sobejamente aproveitada e reafirmada como orgulhosa característica, concedendo à atmosfera que a envolve um teor mais elevado, translúcido e limpo. Pois não se trata apenas do nome das ruas ou das estátuas que embelezam as praças. Os próprios locais fazem questão de orgulhosamente preservar a sua memória mais preciosa. Em Lisboa, por exemplo, basta referir o café Nicola para logo se evocar a figura do poeta Bocage que ali sempre saboreava o seu indispensável cafezinho.

A Europa é isto: história e cultura! À parte de todos os demais defeitos que, como em qualquer outro caso elevado à categoria de exemplo, lhe poderemos apontar. Esqueçamos, por hoje, tais questões. Foquemo-nos somente naquilo que nos prende a atenção. E, estando eu nesta esplanada aberta a uma tão agradável tarde de início de Outono, é perfeitamente compreensível que livremente discorra sobre tais matérias, a meu ver, fascinantes.

Não direi, contudo, que neste caso o banal comporta o grandioso. Ou seja: muito provavelmente, o casal que se senta bem à minha frente não discute Kafka ou as problemáticas do “eu” comportadas pelo existencialismo de Sartre; apenas factos normais da vida quotidiana. Mas… e se tal não se verificasse? E se debatessem mesmo a obra de Kafka, o existencialismo de Sartre? O quão espantoso não seria testemunhar, neste berço igual a tantos outros que do mesmo modo se revelaram profícuos, o debate de novas ideias e de novas concepções? Um novo entendimento da poesia? Uma revolucionária visão sobre a forma como consumimos a música contemporânea? Enfim… Devaneios de idealista, por certo. Embora acredite que outras cores revestiriam este lugar, bem mais vivas e pulsantes… Essa é uma esperança de que nunca quererei abdicar.

Escrevo estas linhas e recordo um episódio que horas atrás testemunhei na secção musical de uma conhecida cadeia comercial. Pois ele é bem representativo de uma das consequências da estrutura cultural que suporta a grande parte dos países europeus: a espontaneidade. Então, como dizia, estava eu a caminhar pelo corredor do dito espaço quando escutei uma simples (mas bela) melodia a ser perfeitamente completada por sua suave (e doce) voz feminina. Frágil e quase tímida, sim; mas dona de uma harmonia espantosa. Ora, escusado será dizer que a atmosfera de tal lugar de pronto se modificou. Admito que, por breves segundos, pensei que se trataria de um qualquer DVD que, como lá é habitual, estivesse a passar num dos ecrãs. Nada disso. A voz provinha de uma jovem que, num súbito impulso, havia pegado num bandolim que se encontrava exposto e, com o auxílio de um amigo que amparava uma guitarra clássica, lá ia esboçando as linhas da sua improvisada melodia.

Cultura manifestada na sua mais espontânea e pura forma: é tão agradavelmente contagiante! Não irei afirmar que tais exemplos são exclusivos da Europa. Nada disso. E ainda bem que assim é. Pois a arte é apenas a expressão, em forma sublimada, da alma humana. Embora outros países não disponham da mentalidade cultural que se formou na maioria das nações europeias, tal não significa que a mesma neles permaneça inerte. E a encarnação de tamanhas dádivas assume-se, por exemplo, nos músicos que povoam as ruas de Nova Iorque, nas melodias improvisadas nos cafés de bairro no Brasil, nos tangos sussurrados em bares argentinos, nos ritmos entoados nas secas vias que traçam caminhos por essa África fora – entre muitos, muitos outros.

É isto que, em suma, me cativa e atrai: a naturalidade da arte, a partilha incondicional de talentos, a celebração da própria criação improvisada no instante mais fugidio! E, volto a repetir, a atmosfera que se cria em tais circunstâncias. Pois viver com e pela cultura é, indubitavelmente, conquistar um lugar superior de consciência e de convivência social. Sim, a cultura engrandece e alteia o Homem. Efectivamente autêntica, livre e acessível a todos. Numa opinião muito pessoal, esse factor, aliado à preservação de todo um legado valiosíssimo, é o que torna a vida citadina europeia bem mais suportável. Pelo menos, por instantes se olvidam os apertos paisagísticos do betão, as múltiplas perturbações dos múltiplos ruídos e a permanente sensação de encarceramento. Na manifestação da arte e na sua difusão, a alma encontra fluidez e uma aprazível sensação de liberdade.

Se agora somarmos todos os factores culturais ligados à Europa, compreenderemos uma das vantagens que, a esse ponto, o continente, em regra, nos oferece: a possibilidade, sempre presente, de construir o amanhã através das escolhas que hoje se assumem, mais elevadas, humanas e justas. Que será, afinal, a cultura? Se não um meio de junção de povos e de celebração da sua identidade? O que comporta, então, essa valiosa vertente, por tantas ocasiões lamentavelmente ignorada, se não a educação das gerações vindouras? É um legado que se confia de herdeiro para herdeiro.

Ainda que seja nativo de um país que, por opção política, provisoriamente aboliu o ministério que tutelava a cultura, não me importo agora com as temporárias restrições que nada são quando comparadas com a perene invencibilidade de outros valores e ideais bem mais elevados. Afinal, como alguém um dia afirmou, poderão matar todas as flores, mas jamais matarão a Primavera. Continuarás europeia, Europa, fiel ao teu estilo mais íntimo, pois por teus territórios haverá sempre alguém a defender as gloriosas virtudes que ostentas. Assim, permanecerás livre. Tão livre quanto o pensamento daqueles que te idealizaram.

Volto a saborear o café. Tranquilo, sorrio por ser e me sentir veramente europeu numa esplanada que bem poderia ser o centro do mundo. Hoje, e mais do que nunca, respiro o mesmo perfume que outrora tanto inebriou as iluminadas mentes de outrora.




Pedro Belo Clara.   

domingo, 6 de outubro de 2013

UM DOMINGO DIFERENTE


Como o caríssimo leitor está por certo recordado, na última crónica que tive o imenso prazer de assinar neste espaço referi, de entre outros assuntos, as eleições autárquicas que num domingo próximo se desenrolariam em Portugal. Ora, acontece que esse domingo já se findou e são os sobejos do mesmo que hoje compõem a razão desta crónica.

Sempre que o clima eleitoral se faz sentir, evoco os dias da minha infância. Não propriamente das enfadonhas campanhas, dos discursos que para a criança que era se afiguravam vazios e complexos (estranha virtude!) ou dos habituais passeios pelas cidades que, à boa moda circense, se enchiam de bandeiras e aplausos. Nada disso. Tais etapas eram apenas os passos necessários que nos guiariam ao grande dia. E é a ele que me referido: ao grande dia! 

A bem da verdade, pouco mudou desde então. Pelo menos, no que ao prelúdio do processo diz respeito. Em geral regra, e digo isto com um certo pesar, as campanhas continuam enfadonhas, os discursos vagos (ainda que implacavelmente oportunistas) e os passeios de angariação de votos são completos desfiles circenses. É, assim, quase sempre difícil compreender a linha da verdade no meio de tanta máscara. Se me refiro agora a tais circunstâncias, é porque as mesmas me incomodam; desde logo, pelo aroma a falsidade que exalam. Ainda assim, gosto de acreditar nessa espécie em extinção que é o “político honesto”.

Contudo, nos tempos da infância, era óbvio o meu diminuto interesse por tais questões. É que nem sequer delas me apercebia. Eram, como referi, um crescendo de acontecimentos que, invariavelmente, iam desembocar do dia da votação. Esse sim, para mim, era o maior feito! Havia algo de especial em dias como aquele. Não só por ser o que era, claro, mas pelo próprio acto de exercer um «dever cívico». Creio até ter cultivado um certo deslumbre sobre essa expressão no imediato momento em que a escutei - «dever cívico». Ah, as coisas maravilhosas que povoam o mágico mundo dos adultos…

Lembro-me perfeitamente de, pelas várias ocasiões que ao longo daqueles anos surgiram, fazer questão de acompanhar os meus pais ou avós no exercer de tal acto indispensável ao bom funcionamento de uma democracia. Como os dias eram sempre de fim-de-semana, a ocasião era duplamente especial. Quem não aprecia um domingo diferente? Os melhores fatos eram usados, os cabelos aprimorados, as gravatas bem afinadas! Excluindo o meu pai, diga-se, pouco ou nada dado a esse apêndice de seda. Mas… que importava isso? O dia era de voto! Quantos suspiros eu soltava, em ânsias contidas, sonhando pelo dia em que eu próprio estaria apto, segundo a sociedade, a exercer tão sagrado direito… Até lá, teria de me contentar em dobrar pequenos papéis com cruzes e depositá-los na minha urna improvisada, o pequeno caixote do lixo doméstico. Vazio e limpo, claro está (pois de sujeiras já o mundo político está cheio!).

Julgo que o meu encanto, mas do que o acto em si, residia na mágica atmosfera que àqueles dias era inerente. A importância, senão mesmo crucialidade, da acção propriamente dita era algo impossível de ignorar. A simples ideia de um mero cidadão poder contribuir para os destinos do seu país era, de igual modo, a grandiosa expressão que resumia todas as envolvências experimentadas. Fascinante!

Mas o dia não se queria assim tão incipiente ou incompleto. O dever era orgulhosamente cumprido pelos adultos – enquanto eu, sempre curioso, viajava de cabine em cabine para conferir as opções políticas dos familiares –, mas, findado o acto, todos nos reuníamos para desfrutar da seguinte etapa do nosso passeio de domingo. Como a hora escolhida para votar era geralmente a matinal, seguia-se, obviamente, o saborear de uma refeição a preceito. Por isso, os dias de voto eram, invariavelmente, dias de celebração familiar. Talvez esse aspecto só sublinhasse o gosto e a importância que à data eu conferia. Mas não éramos caso único. Era comum, lembro-me, ver casais com crianças como eu, e até indivíduos mais idosos, na companhia dos seus deslocarem-se aos locais de voto de carro e, cumprido o «dever cívico», seguirem para um restaurante com o intuito de partilharem os remanescentes instantes daqueles domingos felizes. Parecia ser algo inquestionável: dia de votação implicava almoço de família.

Satisfeitos os apetites, retornávamos ao lar e, ao início da noite, conferíamos as primeiras projecções dos resultados que seriam os finais. Depois, era celebrar ou resignar conforme os ânimos e as inclinações de cada um. E adormecer feliz, claro, após um dia muitíssimo bem passado na carinhosa companhia de quem mais amava (e amo! – é importante que acrescente esse facto). Simples ou não, era a nossa tradição.

Mas os anos passam e certas coisas tendem a tombar nos negros abismos do olvido. Não só para os próprios como para quem os rodeia. No passado domingo, como o leitor já o sabe, fomos a votos. É verdade que a persistente chuva que se abateu por Lisboa naquele dia afastou muitos eleitores das mesas de voto, enquanto que para os mais resistentes apenas terá estragado um ou outro plano. Mas… confesso que senti a falta dos carros com famílias dentro, dos grupos que habitualmente  conversavam à entrada do edifício, das pequenas multidões que entravam e saiam e, claro, dos almoços subsequentes. Na verdade, esse bom hábito tem caído em desuso. E este dia de votação revelou-se um dia de chuva, tão banal quanto qualquer outro.

Não sou homem de me prender a passados. Contudo, acredito que o melhor de nós, sejam práticas, tendências ou hábitos, se ainda nos servir, merece ser aplicado em algo de concreto. Tal poderá recordar um passado ido, sim; mas não mais será esse passado. Se atentarmos bem, veremos que o Tempo é algo de impermanente. Por isso, aquele passado nunca mais o será. Evoluirá, apenas, para uma outra forma temporal.

Por razões pessoais, foi-me impossível exercer o dito «dever cívico» de manhã. Mas de tarde, debaixo daquela chuva ininterrupta, não deixei de o fazer. Como poderia? Eu, que sempre havia esperado pelo dia dos meus dezoito anos para legalmente estar apto a votar? Então, entrei no edifício da Junta onde resido e juntei-me alegremente à população que por lá se quedava. Desde logo me deparei com uma das virtudes da democracia, o governo do povo para o povo (em teoria, pelo menos). Como é habitual em dias de votação, junto às urnas estão outros eleitores como nós, previamente seleccionados para o efeito, habitantes da mesma freguesia em que votamos. E eles também detém o direito ao voto, obviamente, mas ali permanecem no cumprir de um trabalho deveras comunitário. Nada de políticos, polícias ou elementos de qualquer instituição governamental. Pessoas comuns, como eu e o estimado leitor, a orientar um processo tão importante como o eleitoral em clima sóbrio e familiar. É uma bela imagem, não acha?

Cumprido o dever e suportada a chuva, o retorno ao lar. Desta vez, não haveria passeio ou restaurante. Convívio familiar, apenas, no calor doméstico. Enquanto se aguardavam as primeiras projecções, é claro. Parece simples, não? Mas é algo de reconfortante. E essa é a primeira base para um sorriso sincero eclodir. Assim como foi no outrora, é-o, em moldes adaptados, no presente. Em memória de outros dias e das queridas presenças, entretanto idas, que também os coloriam. Que outros não mantenham o legado em que foram criados, é um problema dos mesmos. São opções. Mas perdem algo de precioso, em minha opinião. Prefiro prolongar a atmosfera em que cresci. Pelo menos em minha casa, a boa tradição ainda é o que era. E somente isso importa.





Pedro Belo Clara.