sexta-feira, 26 de abril de 2013

PASSAGENS



Um pequeno pássaro lança-se nos braços do dia, certo de que seu voo será amparado. Da mesma forma, a árvore produz o seu fruto na certeza de que alguém nele encontrará satisfação. Se assim é, porque o caminhante não confia? Porque não se entrega ele? Esquecer-se-á de que é como o rio? Que, fluindo, sempre alcança a foz e desagua no oceano que o espera? Derrubar as barreiras do medo, que apenas medra por subsistir a dúvida e o desconhecido, é uma via de se ser livre e de cumprir o intento maior. Resistir significa colocar pedras no fluxo desse rio, que, com o passar do tempo e com a frequência com que são lançadas, se tornará numa lagoa descolorida e inerte. Existe, contudo, um arbítrio. Como tal, a escolha reside em cada um – ainda que a sua totalidade ou abrangência seja universal. Mas também ela detém os seus limites. Tal como o lavrador que cuida de sua horta, ele não controla os raios do sol ou os pingos da chuva. Se permanecer atento, descortinará as linhas que compõem e regem cada coisa. E uma luz brilhará sobre si.

Por vias mais directas ou indirectas, se o permitir, todo o viajante se torna um discípulo da própria Vida. Tanto esta o instruirá como o auxiliará a recordar. De facto, nunca estará só. Para cada gesto, a correspondente manifestação. É por isso que certos caminhantes, já capazes de ver e entender tal realização, à própria Vida se entregam, no auge de sua fé e de sua humildade. Isso significa confiar em forças superiores a si próprio, ainda que estas não se encontrem distantes de sua presença. Aceita, portanto, os limites da sua condição – por ora limitada. Mas, ainda que partilhe da mesma origem ou razão de seu semelhante, nem todo o viajante se queda no mesmo patamar. Por consequência, nem todos detêm a mesma visão, pois cada um se encontra em partes distintas da montanha que escalam. Aqui se definem as responsabilidades de cada um perante os demais. Os vestígios deixados ao longo do trilho são o testemunho disso mesmo: deixará para trás a sua palavra ou sinal aquele que por si já desbravou o caminho que outros agora percorrem. Mas porque trabalha o viajante em prol do seu semelhante? Eis a distinção entre Ter e Ser.

Nunca estamos sós e todos somos uma coisa só. Aquele que trabalha apenas em virtude dos proveitos pessoais, esquece que é parte de um todo e que tudo o que o rodeia são extensões da sua individualidade. Ao renegá-las, estará a renegar si próprio. Mas, quando o sentir da fraternidade se instalar no coração que deseja beber da Fonte Eterna, logo esse dever se instala em si… Como se inato fosse. Aquele que sabe, contrai uma dívida apenas saldada através da partilha de sua sabedoria, moldando-a em palavras, imagens ou visões. E não poderá ser essa a razão do retorno de um caminhante? Prestes a banhar-se no Mar de Luz, prestes a se tornar uno, por consciente decisão adia a profunda comunhão e regressa aos prados terrenos, mergulhando na dor da ambiguidade e na incerteza da dualidade. Alta brilha a estrela de tais seres, silenciosamente cumprindo a vigília do mais longo dos sonos…

Mas todo aquele que ensina, bem como aquele que é ensinado e aquele que renega o próprio ensino, são personagens que desfrutam de uma experiência singular, e nenhum poderia existir sem o outro. Seja qual for o rumo, ou, antes disso, a génese do retorno, por nada se faz cessar o carácter experimental da vivência, mais ou menos avisada. Pois toda ela detém uma razão clara e luminosa, ainda que aos olhos embaciados não seja ela visível e, por isso, revelada. É preciso imergir bem fundo no lago na consciência, que se renova através das fontes subterrâneas da Consciência Maior, para que tal evidência seja resgatada. Ela própria se reflecte no dom que é a singular arte de cada caminhante. Assim, e se toda a existência é plena de propósito, porque vivê-la como se desprovida estivesse de profundo intento? Apenas ao seu “não descobrimento” se poderá atribuir um “não rumo”, ainda que isso seja, paradoxalmente, um rumo individual – isto é, um rumo passível de ser escolhido. 

Mas nem sempre de suas escolhas está o viajante consciente ou por elas se responsabiliza. E aqui se revela a maturidade de sua essência: no entendimento de cada efeito e na aceitação das respectivas consequências. Apenas ao levar a cabo uma existência imatura, isto é, adormecida, distante da sua primeira intenção, é que o viajante se poderá dizer perdido, inconsciente, incapaz de caminhar, desligado da luz mais primordial. Quando entender esse seu passado, talvez até nem necessite mais de retornar à matéria; talvez opte por se unir à energia que o criou. Então, dirá: «agora me encontrei, eu que havia estado perdido; agora sou a Consciência, eu que havia estado inconsciente; agora sou capaz de caminhar, eu que havia adormecido na berma da estrada; agora sou a luz primordial, eu que havia em entregue à escuridão do não conhecimento». E a personagem que fora interpretada, de pronto se descarta como uma roupagem antiga. Parecendo-lhe tudo deveras ancestral, inconcebível na sua nova realidade, os cenários que compuseram a material existência, ainda bem vivos e presentes, serão apenas resquícios de um mundo que não mais subsiste. Esteja ele prestes a mergulhar na Fonte ou apenas a se preparar para uma nova etapa. O sentimento, em forma de noção adquirida, será idêntico.

Afinal, o que é o tempo de uma vida só? No deserto da eternidade, esse episódio é um mero grão de areia, impossível de distinguir dos demais. Mas, ainda assim, crucial à criação do seu todo. Apenas se findou a turbulência, apenas tudo se fez cumprir. Em ambos os mundos, brilha a aura daquele que cumpriu. Mesmo que regresse, mesmo que volte a palmilhar o vale do esquecimento, será bafejado pelo sereno êxtase dos que vivem elevados. Essa conquista é pessoal, pelo que nada mais se lhe poderá furtar. Em cada passo, o magnífico Ser se aproxima cada vez mais da casa onde nasceu.




Pedro Belo Clara. 





quarta-feira, 17 de abril de 2013

FINALIDADES



O sol despontou, abençoou a vida em seu redor e a jornada do viajante se iniciou. Longo será o seu percurso, solitário também; mas disporá, se cultivar em si a visão, de todos os elementos necessários à concretização de seus propósitos e à própria evolução do Ser em causa. É esse um dos tesouros que encerra em si e que, no começo de sua viagem, olvidou – assim como a ideia de que é parte ínfima de um Todo infinito. Tais sentires, que serão certezas para a sua Alma, concederão ao viajante sabedor um doce conforto, catalizador de sua crença e fomentador de paz e equilíbrio. Não teme o negro fundo do poço aquele que sabe, em sua verdade, o que lá o espera – e toda a realidade se molda pela pessoal visão que se projecta em cada coisa.

Mas, as diversas etapas que o esperam, não são detentoras de um vazio despropositado ou completamente absurdo. São, em sua vez, nuvens que, sucessivamente alcançadas e domadas, o guiarão até à morada das estrelas. Nesse percurso (ou, melhor dizendo, ao longo do mesmo), é comum questionar-se a  finalidade do mesmo. Isto é: o motivo de todo o palmilhar, a razão que sustenta a viagem, a génese de todo o primordial impulso que o impeliu a realizar algo que já não recorda. A pequena gota de água separou-se do oceano que a albergava, onde era una com todas as demais gotas que, juntas, compunham o oceano em si, apenas para que de novo a ele pudesse regressar. Não foi já tal coisa dita e partilhada? E o oceano? Deixará de existir ao se saber desprovido da sua preciosa gota? Ambos vivem um no outro, ambos são uma coisa só. E nunca cessarão a sua existência. Mas, qual o porquê da partida? O que causa a separação? Porque se distende o que antes estava unido? Por punição? Por desprezo? Por consequência de mesquinhas calúnias? Essas ilusões assombrarão as mentes que se auto-limitarem, mas num Universo de Amor tais ideias são finos espectros que desvanecem à luz da crença e do esclarecimento. Recordo: todo o caminho é um escolha e suporta a sua causa. Mas a sabedoria íntima, ganha através de muitas vivências (ainda que essa não seja uma via exclusiva), é uma luz imensa, deveras fascinante e profunda… E também se poderá resumir a isto: experiência. Eis a razão maior. Tudo será recordado, toda a verdadeira realidade será revelada quando a gota de água se fundir no seu eterno oceano, quando a centelha de luz retornar ao seu sol, quando o filho que há muito partiu regressar a casa de seus pais – simples metáforas para os caminhos da existência e suas finalidades, aqui vistos através da mais simples das formas.

Ainda que os rumos difiram entre os inúmeros caminhantes que os delineiam, a causa global é comum. Todos somos as partes de um Todo aqui projectado, por ilusões divido e apartado. Assim, antes de beber o elixir do esquecimento, o viajante definirá o seu rumo até à origem, mesmo que isso signifique o assumir da dúvida mais abrangente e o suprimir de toda a crença. Pois também essa decisão é um caminho, e esse caminho é certamente passível de ser trilhado. Por mais díspares que possam ser, desembocam todos no mesmo lugar: o Infinito. Pois o Céptico e o Religioso, assim apresentados pela dualidade deste mundo, são também eles uma coisa só – como o Grande e o Pequeno, o Alto e o Baixo, a sua Esquerda e a sua Direita. Se se entregar nos braços da Vida, confiando nas forças que brandamente a regem – aquelas energias superiores ao próprio viajante, mas das quais também ele é parte integrante – encontrará aí uma suave via para atingir o seu propósito. Mas, como referi, essa é apenas uma mera direcção, uma pequena pétala de uma só rosa. Toda a direcção serve o mesmo fim, toda a pétala compõe a doce formosura de uma rosa.

Entre esses tempos de chegada e partida, pois a existência material é um simples sopro, célere e efémero, contam-se as diversas etapas a cumprir, a alta escadaria que em seu percurso o viajante irá subir, até ser recebido, de braços bem abertos, no Mar de Luz que o espera. A diversidade por ele experimentada será, de facto, vasta, fazendo jus à sua própria nomenclatura. Mas que não olvide ele o principal: o que é, é-o por uma sólida razão. As experiências serão, por isso, causadoras das mais amplas sensações e aprendizagens. À medida que certos impactos sejam causados, tanto nele como em nós (pois que somos nós, leitor, senão os caminhantes de uma grande jornada, seus semelhantes em condição?), as impressões que restarem, essa maré que traz pensares e conclusões até às margens de nosso Ser, impulsionarão certos padrões de comportamento que serão, a seu tempo, consolidados. Importa, pois, ao mais avisado dos viajantes, entender cada um deles, avaliá-los e julgá-los, escolhendo o que poderá ser melhor para a sua existência, para a história que de momento se encontra a escrever. Apenas aqui poderá ele ser detentor do direito de julgar: sobre o que deve ou não entrar no capítulo de sua existência, de forma tão branda quanto a brisa afaga as folhas do grande carvalho. Poderá, assim, escolher o seu padrão, a sua rota de acção ou até mesmo de passividade ou entrega, desde o mais complexo dos roteiros ao mais simples e desapegado ideal de experiência. Como nos demais casos e hipóteses, é uma opção. Pois tudo depende da perspectiva de cada um de nós, do olhar adoptado perante cada coisa nova, das razões que motivam o que fazemos e o que escolhemos. E, uma vez identificado, ou o consolidará ou o transmutará, quebrando a velha ligação e cultivando uma nova.

Ser ou estar consciente é, numa primeira fase, saber colocar tais questões e encontrar as suas devidas respostas. Poderá entender que se perderá no devaneio turbulento das emoções sentidas e, como tal, escolher uma vivência longe do seu extremo. Aí, estará a sua escolha. No entanto, poderá considerar que essa plenitude de sentires é a última peça da sua experiência. Assim, decidirá aproveitá-la. Ou, ainda, ser mais brando e experiênciar o «melhor dos dois mundos». A analogia é clara: três homens estão sentados à mesma mesa, bebendo da mesma garrafa de vinho. Contudo, ambos o saboreiam de formas distintas. Um, mal recebe o primeiro gole, de pronto o cospe, não desejando entrar nas expirais embriagantes. Outro, muito menos comedido, esvazia o seu cálice de um trago e deleita-se já com as maravilhas de uma segunda garrafa. O último, por sua vez, deseja deliberadamente saborear o vinho, embora não intente tombar nas mais ébrias tentações. Os mesmos elementos, mas personagens diferentes… Causas idênticas, efeitos distintos. Estar consciente é entender o efeito do vinho, à partida, e suas implicações. O resto… é escolha. O guerreiro que opta pela batalha, quando a sua escolha é definível, questiona-se: «granjeio protecção para a batalha por ser sensato ou por temer a dolorosa ferida?». Dessa mesma forma, o faminto que desconfiar do pão que lhe for servido, desde logo o estará a envenenar. Eis a perspectiva e o comportamento perante os sucedidos. Serão esses que guiarão o viajante até ao término de sua jornada, no tempo em que todas as estações se findarem, fazendo-o cumprir o propósito a que se dispôs. Quão maravilhado ficará quando entender, em sua Alma, que cada gesto, cada toque ou sopro o conduziu àquele esplendoroso momento…

O que estará, então, no final de todos os seus rumos, quando os diversos trilhos se unirem num só espaço, num só destino? Para muitos, a Liberdade, a Felicidade, o Amor, a Compaixão, a Redenção… Estarão erradas essas idealizações? Não, em essência… Ainda que todas sejam pedaços da mesma tapeçaria, são igualmente, aqui, em sua forma reconhecível, ventos que sopram, ventos que vão e vêem. Desprovidas de eternidade, a centelha que lhes preencheria e que delas faria Unidade, são fugazes estados de ser, arquétipos que o viajante experiência e assume, ainda que não os mantenha de forma perene. Fazem parte da experiência, sim, mas são igualmente requisitos de algo superior, uma vez que com suas linhas se tece o Infinito. Seja qual for a razão da busca de um caminhante, para o seu íntimo parecer ela será a sua finalidade, enquanto se demorar pelos campos da matéria que o ampara. Cada um buscará aquilo que dentro de si mais veemente pulsar, implorando desbravamento, impulso ou conquista. Mas… o que dizer do sábio que opta por renunciar ao mérito que lhe é justo e devido, transmitindo-o aos demais, no auge de seu amor e compaixão? Não saberá ele que algo mais infindo o espera? Não será ele, por ser precisamente aquilo que é, motivo de inspiração para o seu semelhante? Um farol capaz de iluminar a mais tenebrosa escuridão? Uma firme mão que se desflora em expresso auxílio? Quem abre os braços a essa renúncia, encontra-se muito além do que motiva a experimentação… Pois vive no Eterno, tendo ele próprio, consciente disso mesmo, o Eterno em si.

Muitos de nós poderão considerar tais ideias como sendo a meta da viajem que empreendem. De facto, para muitos são aquilo que a impulsionam: encontrar, um dia, o Amor, saborear o vento da Liberdade, sentir o sorriso da Felicidade. Essas são as razões que urgem ser encontradas e justificadas, no que ao seu entendimento diz respeito. Mas, quando o viajante os detém junto de si e dentro de si, não entenderá ele que tais sentires mais não são do que efémeros estados? Uma condição aliada à matéria, onde tudo é mutável e passageiro, e que se assemelha às estações, onde tudo se sucede e é sucedido? Quando o viajante for ainda mais fundo em sua busca, quando alcançar lugares ainda mais interiores, entenderá, por fim, que a vera finalidade, respeitante aos estados de ser, ou o término de sua longa jornada, é a própria Plenitude. Só esta paira sobre todos os ciclos, sendo mais do que vazio resultante do desapego e do despojo (que para muitos é a finalidade); só esta, de tão árdua conquista e manutenção, se queda para além de tudo o que é dual. Eis o aspecto diferenciador: a dualidade, característica intrinsecamente material. Onde coabita o Amor, existe a Dor; na Liberdade vive o Encarceramento; a outra face da Felicidade é a Infelicidade. A Plenitude, por sua vez, é a cortina que descerra uma paisagem infinita. Embora aqui, neste plano tão familiar, também ela se possa fazer sentir através de uma sensação de preenchimento luminoso e de constante fluidez, serena e branda. Muitos saboreiam esse fruto através da contemplação, que mais não é do que um mero estado meditativo. Mas qualquer sentir será apenas a projecção de algo sobejamente superior, assim como o é com tudo o que de mais sentimos. Mas isso, é certo, não invalida a sua experimentação.

A emoção é algo de inconcebível no outro lado do véu que separa este lugar do lugar onde o viajante teve origem e terá o fim de sua caminhada. Assim, como os sentires poderão aí subsistir? Cessa o dual, inicia-se a infinidade. Aliada a seu par, a Paz, a Plenitude cobrirá a Alma com o mais reluzente dos mantos. E aí estará a desejada eternidade.



Pedro Belo Clara.






segunda-feira, 1 de abril de 2013

CAMINHOS DE ASCENÇÃO



É deveras usual e, de certa forma, compreensível que, à medida que progredimos no Caminho, povoem as nossas mentes pensamentos que invocam o porquê de tamanha viagem, a razão de um certo percurso, de uma peculiar via, de determinada ocorrência. Questionar é, na realidade, um dos actos mais reveladores e impulsionadores do nosso crescimento. É, além disso, uma pequena semente que em nós se plantou desde o dia em que iniciámos a jornada. A diferença reside apenas entre aqueles que a decidiram cultivar e os que a remeteram ao abandono e ao olvido.

Entenderemos que muito se estende, prolifera e pulsa muito para além da ilusão das coisas. Toda a origem se queda em nós, mesmo que adormecida. Tudo é sabido; apenas de momento não o é recordado. Tal poderá ser, ainda assim, questionado, mas no caminhante mais atento e receptivo desabrochará algo tão forte quanto a fé, a singular génese da entrega. E cada um de nós constrói, de forma particular, os motivos da mesma. Independentemente das vias escolhidas, pois cada existência a isso mesmo se resume, a escolhas, nunca deixámos de ser as pequenas gotas de água que intimamente desejam regressar ao infinito oceano de onde foram derramadas. Mas é justo que se realce: a cada um pertence as suas próprias conclusões, pois todos somos, por vias distintas, cultivadores de diversos pomares.

Poder-se-á, assim, indagar o motivo dos motivos, a razão mais primordial de todas… E entender que bem antes da mente compreender, já a Alma sabia e detinha esse saber como uma íntima e preciosa relíquia. Existe uma grande aprendizagem em esquecer o caminho de casa, apenas para que de novo este seja reencontrado. É o tesouro que sempre possuímos e que devemos perder, somente para de novo o encontrar. Além disso, a origem, a primordial Unidade, apenas se justifica na manifestação de suas extensões, isto é, na criação da matéria e nas tão distintas experiências que proporciona. Essa história, tão bela e profunda, encontra-se impressa em cada alma, em cada coisa que vive. E adorna o Caminho com a sua deveras cativante essência, pulverizada em cada encontro e desencontro, saudação, diálogo, contemplação… Bebemos o néctar do olvido apenas para que de novo pudéssemos recordar. E em toda a gota de água que se escorre pelos recantos do mundo pulsa tal coisa, pois a água que a compõe, apesar de distinta na forma, é em essência igual à de seu semelhante – sendo, por sua vez, idênticas à da fonte que as jorrou. A separação é uma mera ilusão. No âmago de cada coisa se manifesta a parte mais sagrada de si, por aí mesmo ela existir, unindo-a à sua divina origem.

É claro que cada viajante percorre o seu solitário rumo, ainda que nunca esteja verdadeiramente só. E, ao longo do mesmo, queima etapas que somente o engrandecerão – os degraus de sua ascensão. Quem vê o oculto Bem de todo o sucedido, confia em seu percurso. E quem confia, entrega-se. Essa é a via da Fé, uma entre tantas outras. Cada processo levar-nos-á até outras paragens, inóspitas ou não, mas por certo o próximo desenvolvimento do percurso que o caminhante decidiu vivênciar. E, sublinho, tal decisão é assumida a um nível bem mais profundo, ditada e firmada em clara sabedoria. A Unidade, ao se dividir, justifica-se; com isso, surge a dualidade, juntamente com o proliferar da restante criação. Assim surge a matéria, a forma que receberá as gotas etéreas, que em seus recipiente caminharão pelo imenso palco de um mundo deveras diverso. Em cada viagem, uma personagem; e todas serão criadas em nome da experiência e da pessoal evolução. Assumimos a sua condição quando definimos a nossa postura perante a Vida em si, tomando um de diversos caminhos que não são, claro está, exclusivos ou perenes. E caminharemos… Até se findar a jornada e a centelha se reunir à chama de onde proveio.

Entre todas essas coisas, é claro, muito mais ainda se detém. Entre o Céu e a Terra, inúmeras coisas vivem, pulsam e existem… Assim o é, na mesma exacta forma. Por isso, em cada caminhada, em cada etapa vencida e alcançada, o viajante muito experiencia. A forma como o faz, apenas depende dele. É essa, de igual maneira, a sua prova. O mais sábio de todos saberá que no centro da tempestade que o assola encontrará refúgio, por este ser calmo e sereno, ao invés do chorrilho que as emoções exacerbadas provocam… Nessas águas, muitos se poderão afogar. Mas até isso será aprendizagem. O cansaço assomará esse fatigado viajante, rendido, tornando pesado o erguer de um só dedo. Sentir-se-á esgotado em sua Alma, desprovido de forças, incapaz de se erguer, de novo, após futuras quedas… Mas até isso é aprendizagem. Não estará sempre, junto dele, uma mão aberta, mesmo que não a saiba ver? Não terá sempre a hipótese de transcender, mesmo que julgue não saber como? Não terá o tempo para pedir o que mais necessita, para que depois lhe possa ser dado? Quem vê o oculto Bem de todo o sucedido, confia… E quem confia, entrega-se.

Mas, no centro da tempestade, terá o lugar ideal para a sua vigília, enquanto medita e constrói a sua decisão, enquanto o rodar do ciclo de sempre continuar a fermentar as suas causas e efeitos. Eis a segunda opção. Mas, seja qual for o rumo seguido, se não olvidar a razão de seu caminhar, após todas as turbulências que por certo passará, as que apenas o testarão e instruirão, surgirá, por fim, a hora da transmutação maior. Aí, descobrirá forças que julgaria impossíveis, desconhecidas por sua ainda limitada visão. Depois, no seguinte sopro,  o processo evoluirá e se completará. E nova etapa ter-se-á consumido, um novo degrau terá sido conquistado na longa escadaria que se inicia no íntimo de cada viajante, espraiando-se até às margens do Eterno.

Onde reside a via da Fé, encontra-se a do Amor, da Compaixão, da Sabedoria, da Transcendência… E poderá o viajante dedicar-se a uma só? Não ficará ele sabedor de cada preceito? Ainda que toda a natureza seja exclusiva e singular, ela, por ser uma parte, compõe o infinito manto que reveste o Todo. Somos, sem dúvidas obscuras, pequenos seres especiais e únicos, desde a diversidade que nos habita a cada gesto peculiar e forma de entendimento e reacção. Não é, por isso, a experiência em si que despoleta tal coisa, pois ela poderá ser comum a muitos de nós. A curiosidade maior, antes fascínio para quem a observa, reside no impacto que cada uma cria em nós e na nossa íntima maneira de com isso lidar. Através desse acontecimento, definimos a forma de recebimento (que, desde já, volta a comportar uma escolha), de aprendizagem e de como permitiremos que se impulsione o desenvolvimento do ser que somos. Pois, após inúmeras viagens, sobejam sempre remanescentes que nos poderão impedir de caminhar: pesos a libertar, dívidas a saldar, feridas a serem saradas – eis o que nos poderá limitar o acesso ao próximo degrau do processo evolutivo. Mas até isso, claro está, é aprendizagem.

Com maiores ou menores envolvências, escolhas assumidas ou arrependidas, seguiremos rumo ao horizonte de sempre. Seja qual for a via escolhida, da qual façamos a nossa maior bandeira. Se continuarmos a desvendar e a crer no Bem oculto de todas as coisas, seja pelo Amor, Compaixão, Brandura ou Paciência, fomentaremos a nossa crença. E aquele que confia, é certo, esteja onde ele estiver, exerce e pratica o despojo maior – a renúncia e a entrega.



Pedro Belo Clara.