sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

ESTRELA DE NATAL



Findada a quadra festiva, com a celebração natalícia e a viragem do nosso calendário, recorri a um exercício que ultimamente tem caído em desuso – embora continue a ofertar todas as suas vantagens da forma mais directa (por vezes, crua) possível. Sim, refiro-me aos afamados períodos reflectivos, onde ponderamos os débitos e os créditos do nosso coração. Contudo, muito para além das palavras ditas ou não ditas, das acções consumadas, dos momentos de partilha e da solidão das horas de pensamento, houve algo que sobressaiu de todas essas memórias. Estranhamente, até; uma vez que a mente conceptual, sempre obstinada, tem o hábito de ignorar a simplicidade profunda das simples e banais coisas. Talvez, nessa ocasião, os excessos dos feriados tivessem toldado a sua atenta vigília. Quem o saberá?

Bem, tudo aconteceu no ano transacto (2011, entenda-se), na exacta quadra que ainda por aqui deixa os seus vestígios reluzirem. Teria sido essa a razão que fez emergir a recordação? Ter-se-á avivado com o regressar de tal cenário e, como gaveta que se entreabre sem que ninguém lhe toque, de pronto oferecido o aroma distinto de tal tempo? É bem provável… Mas sigamos em frente no relato. Caminhava eu por uma ampla avenida a norte da cidade que me viu nascer, quando um vulto, ao longe, se anunciou. Lentamente, enquanto nossos passos nos iam invariavelmente aproximando, o seu rosto e forma revelavam-se – até ao ponto de entender, por forma segura, que tal pessoa fixara o seu estranho olhar em mim. Desenganem-se agora os leitores mais entusiastas ou utópicos, pois vossas expectativas sairão por certo goradas – não, não foi o simpático velhinho de brancas barbas que me interpelou naquele fresco dia… Tampouco conhecia eu a identidade dessa figura mistério! Continuando: o encontro tornava-se cada vez mais inevitável, como é normal em quem caminha em sentidos paralelos e opostos, e eu, no seio de uma tola mundaneidade (admito-o, leitor), aquela que nos faz sempre desconfiar do que é oculto e incógnito, desviava o olhar e indagava o porquê de tal figura não retirar o seu de minha pessoa. Apesar do crescente desconforto, eis que, por fim, brando e firme enfrento o desconhecido! Na confluência de nossos estranhos mundos, fronteiras que em exíguos instantes se iriam tocar, escuto as palavras que me estavam reservadas: “Feliz Natal!”… Assim, de forma tão natural e simples: um desejo de boas festas. De pronto retorqui, recomposto, retribuindo da forma que melhor sabia, compassiva e educadamente, tamanha e rara amabilidade para com um completo estranho.

Na verdade, apenas quando formulou o voto é que a fala da amável senhora, provavelmente quase de meia-idade, denunciou-a como sendo portadora de uma certa deficiência a nível mental. Terá sido esse – e só esse – o motivo de tanta simpatia? Haverá sequer motivo para assim sermos, amáveis e disponíveis para o nosso semelhante? Ou não deverá tudo fluir de nosso coração, aberto e receptivo? As brumas do Tempo tendencialmente enublam o coração dos Homens… Mas por certo que não é necessário todos sermos portadores de uma qualquer deficiência para formularmos tão simples e sincero desejo! Talvez, numa realidade obscura de valores invertidos, onde escassa é a luz que assoma ao olhar do indivíduo, deficiente seja aquele que assim se comporta… Nesse caso, serei um orgulhoso deficiente. Pois, no fundo, basta que em nós resida a vontade de assim sermos: abertos, espontâneos, fraternos. Olvidamos muitos princípios nos dias que correm; principalmente que aquilo que nos une, como Homens que somos, é bem mais nítido e forte do que o aquilo que nos aparta. Porque se insiste, então, no ilusório separatismo?

É uma escolha – no fundo, a isso se resume. E foi precisamente essa escolha que aquela senhora assumiu, disso consciente ou não, ao passar junto de mim e expressar o seu desejo. Talvez o tivesse feito a todos os que cruzaram o seu caminho, talvez tenha até cumprimentado todos os veraneantes daquela rua, mas… que importância isso detém? Afinal, o símbolo supremo da época natalícia, a sua mais sublime mensagem, não é (ou deveria sempre ser) o Amor? Talvez os seus sobejos, compreendidos por luzes apagadas, caixas vazias e papéis rasgados, tenham soterrado tal princípio nos pântanos do desenfreado consumismo... Mas aquela senhora, apesar de sua peculiar condição, entendera o segredo do natal de todo os dias. Ela e somente ela é que desterrou costumes idos e cintilou como a célebre estrela que embeleza a quadra em questão. Para mim, pelo menos, um outro sol brilhou – e isso é o tudo que me basta. Mas tal situação carrega raízes ainda bem mais profundas e significativas, que irrompem do solo e se fortificam em sólidos ramos. Pois sobejou a suprema prova de que tais actos poderiam (e bem!) povoar o imenso deserto do quotidiano humano, se cada um de nós, definitivamente, decidisse fazer de seu coração um fértil canteiro – onde somente se cultivariam as sementes da mais alta estirpe.



Pedro Belo Clara.





  

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