sábado, 19 de fevereiro de 2011

Poemas de uma viagem na linha gaivota

IV.

Há um tempo que se aproxima
Do seu espectável término,
Mas tal não impede uma afluência
Desenfreada e constante de gentes
Com o aroma de outras paragens
E com os sobejos de mais um dia de vivência;

Há todo um contar de rápidas horas
Que não consentem a sua captura
E um cunho sentido apodera-se
Dos corações que nessa realidade
Pacatamente se confinam –
A ligação esmorece.

Será das novas gentes?
Será esse o motivo dos frágeis
Sorrisos agora escassearem?
São tantos os mundos a conhecer,
Mas tão poucos aqueles que
Verdadeiramente se abrem
Ao temivelmente amplo exterior:
Incessantes batalhas interiores,
Histórias com definido moral,
Lições de vida vivida com o sabor do mar –
Que títulos mais a eles se poderão adequar?

Mas é chegado o momento em que abandono
O papel de passageiro que desempenhei,
Assumindo-me como viajante no partir,
E, antes de tal acontecer, em silêncio,
Minha família estranha e obscura,
Concedo-vos o conforto das palavras:

Por mais intenso que seja o cansaço,
A desilusão ou a gasta nostalgia,
São somente as premissas de um dia
De Novembro que agora se concluem.

Afinal, de uma forma mais árdua ou aprazível,
Todos vós sobrevivestes a um novo obstáculo
E conservaram a vossa própria substância.
E, no final, isso é o tudo que comporta
A mais célebre importância.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Poemas de uma viagem da linha gaivota

III.

Corre, toupeira mecânica,
Como se esse caminho
Se prolongasse pelo infinito!
Em derradeira hipótese
Imortalizamos este instante iluminado,
Onde vários olhos indagadores
Se fixam em tudo quanto vêm,
Onde os calados suspiros
São tão compreendidos e aceites,
Onde nada ameaça quebrar a ligação,
Por mais insistente que seja
A técnica do pedinte.

E, a cada passada empreendida,
A entrada de uma nova estação:
Viajantes que vão e vêm
Em tão natural movimento,
Tal como o é na vida –
Curioso é constatar
Como o rosto da nossa existência
Se depara com o rosto
Da existência de alguém.

Que força ordena à carruagem
Para parar e abrir suas portas
Onde, para além delas, está
Um jovial sorriso de princesa?
Que soberbo fenómeno aleatório!
Será somente um acaso?

Tudo possui a sua Razão
Não fundamentada
E a sua Ordem desordenada
Criada por outros tantos,
A começar por nós mesmos;

Rectilínea e completa
Apenas é a linha metálica
Que define este percurso.  

 

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Poemas de uma viagem na linha gaivota

II.

Preenchida está a carruagem,
Sem lugar para a extensão sobreviver,
Num misto intenso e berrante
De cores espalhadas e misturadas
Em tela nova –

A viagem continua
Pelos meandros da escuridão
E das luzes estranhas
Que enfeitam cada paragem.

Os passageiros de todos os momentos,
Aninhados a nem sei bem o quê,
Pesando um silêncio que se impõe
Por entre tímidos murmúrios,
Parecem finalmente unir-se
Num ambiente próspero a confissões,
Como uma família distante –
Ainda que estranha e obscura –
Que partilha um reencontro.

Fantásticas são as obras
Operadas pelos espaços restritos!

Então, todo um chorrilho de emoções
Flúi pelos corredores apertados
E em rostos com expressões
Tão diferentes e únicas:

Uns, sorriem na inocência,
Outros, por vergonha,
Impelem como podem
O derramar de lágrimas
Ansiosas por eclodir
E outros ainda se mantêm
Em sua natural condição
De simplesmente estar,
Serenos em si, mas com uma
Fadiga expressa no olhar. 



domingo, 13 de fevereiro de 2011

Poemas de uma viagem na linha gaivota

I.

É um fim de tarde frio,
Este que agora se apresenta
Perante mais um dia de Novembro.

Concentrado em pensamentos
E melodias que se afinam só para mim,
Desço a curta escadaria
Que dá acesso à entrada
Para os túneis do progresso.

Progresso?
Mas que suposto progresso é este
Que se diz construtor do futuro,
Mas que em tantas ocasiões
Se encontra embargado?

Talvez ele se reflicta
Em cada um dos olhares
Desta civilização dispersa,
Embora ordenada ao longo
Dos imensos bancos corridos,
Como se de pombos contemplativos
Repousando numa saliência
Da fachada de um prédio se tratassem –

Cada um com seus pensamentos,
Imergidos no esforçado calor
De cachecóis e golas altas,
Escutando suas melodias monocórdicas. 

Alegria? Tristeza?
Algum sentimento,
Por mais efémero que seja?

Mas refrega o teu descontentamento,
Pena minha (ou será entusiasmo?),
Pois a locomotiva subterrânea,
Galopando como orgulhoso garanhão,
Já se aproxima do adro
Desta apinhada estação.


quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Coisas simples

É sublime o sabor que das coisas mais simples (ainda que em tantas ocasiões sejam renegadas) pode advir. Certo dia ou, sendo mais preciso, numa fresca manhã de Dezembro, eu era apenas mais um dos muitos indivíduos que esperavam (e desesperavam) numa longa fila de atendimento de um determinado estabelecimento comercial de Lisboa. Os minutos passavam e os números das senhas de atendimento, esses, esgotavam-se ao ritmo de um conta-gotas ocioso. Para ser franco, a minha urgência em ser celeremente atendido não era abundante, mas facilmente se compreendem os desígnios da impaciência em gentes de genes tão fogosos e genuinamente latinos, dos quais este belo povo lusitano é um óptimo exemplo. E foi rodeado destas circunstâncias que floriu a beleza de um gesto tão simples e sincero. Estando de pé, em espera e relativamente perto de minha pessoa, um simpático senhor aproximou-se (o seu esforço não foi grande, repito: estávamos perto um do outro) e perguntou-me qual era o número da minha senha. Concedendo-lhe eu, educadamente, uma resposta, amigavelmente me ofertou uma outra senha, com um número consideravelmente mais baixo do que o meu. Será escusado referir a gratidão que senti ao ser alvo de tal generosidade. Assim, enquanto aguardava a minha nova vez, decidi que aquela energia autêntica, casta e única não deveria permanecer estagnada em mim; eu tinha de a partilhar! A seu tempo, lá se concretizou o meu desejo. Estando já de saída, ostentando os vistosos sacos daquele estabelecimento, aproximei-me de um outro senhor (junto à porta de saída) e perguntei se os seus afazeres naquela loja seriam iguais aos meus, já que as senhas dividiam-se por categorias, consoante o tipo de produto a adquirir pelo consumidor. Confirmando tal suspeita, concedi ao bom homem a minha primeira senha. Tal como os meus, instantes antes, os seus olhos brilharam de gratidão; tanto, ao ponto de me desejar umas “boas e felizes festas” num tom de voz sincero. E, assim, aquele estranho e mágico ciclo foi deixado intacto, pelo menos durante a minha participação nele – iniciado por mãos incógnitas (quem me concedeu a senha tinha já, por sua vez, recebido uma outra), terminou, provavelmente, num outro alguém desconhecido. Mais importante que tudo isso foi a corrente energética que, em época natalícia e pelo mais singelo dos motivos, existiu e se instalou naquele espaço. É claro que as questões morais e de justiça equitativa também aqui se levantam: porquê conceder uma simples senha a este indivíduo e não a um outro? Quem somos nós para escolher quem deverá ser brindado com tal oferenda? Ambas são verdadeiras e correctas em seus intentos. Não somos nenhuns Deuses do Olimpo, nem regulamentamos as aleatoriedades dos acontecimentos ou a premeditação dos mesmos; somos Humanos, seres que acreditam que, por vezes, numa acção inocente, poderão realizar uma diferença significativa, seja pelo aparecimento de um sorriso ou no limpar de uma lágrima. E quem nega que, nesses momentos, uma Força superior e sábia nos domina e nos faz veículos de seus motivos luminosos? Afinal, a semente do Amor reside no interior de cada Homem, e é de sua exclusiva opção e responsabilidade plantá-la nas bermas do quotidiano Caminho.