domingo, 18 de dezembro de 2011

Diferenças


(Nota prévia: publico, munido de intenções natalícias, um antigo poema (ao invés dos habituais textos) que representa a era dos meus primeiros trabalhos, embora esteja aqui já devidamente corrigido e lapidado. O Natal é sempre motivo de reunião e festejo, mas porque não nos lembramos dos demais irmãos espalhados por este mundo? Assim, através de actos ou de sorrisos sinceros, o nosso amor estará, nesta quadra, com todos eles, com todos aqueles que vivem um "outro Natal").


Lá fora, a neve cai;
Lá dentro, risos ecoam pelos espaços
E o estridente tilintar dos copos de cristal
Faz-se escutar além da cómoda barreira.
A alegria começa. É noite de Natal.

Nessa casa de família abastada,
Bela, bem decorada e quente,
Onde pequenos toros ardem
Numa antiga e enobrecida lareira,
Há, numa janela, um curioso olhar
Que tenta romper o mate do vidro.
E o que vê? Uma mesa imensa,
Plena de apetitosas e requintadas iguarias!
Como ele gostaria que a sua vida vazia
Fosse assim, plena de cor e requinte…

Então, com aquela inconsciência
Que tão bem caracteriza uma criança,
Esboça um sorriso envergonhado
E inspira um pouco de esperança.
Imagina-se logo naquele lugar:
Aconchegadamente feliz e amado;
Imagina que faz parte daquela família
E que ajuda a distribuir os presentes.
Sonha, apenas sonha, que desfruta
Da melhor noite da sua ainda curta vida.

Seus olhos tremeluzem de alegria,
Alimentados por uma felicidade
Que dificilmente voltará a conhecer,
Mas, de súbito, sua presença é notada.
Uma mulher empertigada e dominadora,
Com um busto de estátua, carregado,
Dirige-se àquela janela, vitral sonhado.
O menino bate no vidro e apenas pede pão,
Mas, numa frieza mais gélida que a noite,
Só recebe em gritos um indiferente «Não!».
Cerra-se a cortina, o sorriso do menino desvanece,
O seu mundo sonhado esvai-se pelas grutas da dor.

Como era injusta aquela mulher…
Que sabe ela acerca da verdade lá de fora?
Assim, dissipou-se uma linda ilusão
Num dia que podia ser de Primavera…
E, para quem apenas se serve de velhos trapos,
Um frio cortante e gélido sopra agora como
Um eterno castigo, por demais incessante.

Fecha seus olhos e pensa se aquele velho e bom senhor
Realmente existe. Se sim, porque o abandonou?
Ter-se-á esquecido dele? Ou será que o deixou?
Para quê tudo isto? Para quê passar por tanto mal?
Adormece e uma lágrima corre por seu rosto.
Querendo ou não, esta foi a sua noite de Natal.

(Pedro BC).


quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O Indivíduo e a Sociedade

Em nossos dias de viagem diária, por mais incessantes que possam ser as solicitações de nossa Alma, ansiosa por se maturar, por se incluir em mais um novo percurso de auto-desenvolvimento, é importante não olvidar o facto de que não estamos sós. Isto é, respiramos e operamos em comunidade, por mais isolados que nos possamos achar e por mais amplas que sejam as nossas fronteiras interiores. Assim como não há sol sem lua, também nenhuma parte poderá existir sem o seu todo. Cada indivíduo é detentor do direito de ser respeitado por aquilo que ele próprio é e defende (em último caso, será “respeitosamente tolerado”), mas ele não se encontra só nesta grande estrada. Poderá caminhar sozinho, mas jamais se encontrará só. O isolamento social é sempre uma opção de cada um, podendo ser este um estado meramente temporário ou, em alguns casos, definitivo. Em tudo deverá existir um equilíbrio e, por isso, nenhum desses aspectos se encontra aqui em causa – todos somos UM; todas as espécies que neste belíssimo lugar residem, partilham a sua existência com as demais. Assim sendo, o Indivíduo não poderá ser considerado com alguém distante ou estranho à sua sociedade pois, em qualquer caso, ele é parte constituinte da mesma. Ainda que seja uma prática comum a quem governa ou, pelo menos, detém um considerável poder interventivo, não me refiro às habituais exigências que a Sociedade impõe ao Individuo, caminho esse, como tão bem sabemos, pleno de subjectivas intenções manipulativas, que só servem os “grandes senhores”. Mas falar de quem maneja as linhas das marionetas dará azo a um outro assunto, que não aquele hoje aqui exposto. Toda a Sociedade, sim, deverá contribuir para o Individuo e vice-versa, mas de uma forma fluida, sem qualquer pressão ou exigente realização. Aquilo que, sumariamente, indico, é o facto de, por mais embrenhados que estejamos em nossos obstáculos pessoais e sua formas de superação, podemos erguer nosso olhar e, perscrutando as redondezas, aproveitar a oportunidade que o Caminho nos oferece para partilharmos nossas experiências. Daremos somente a mão que se entrelaçará em uma outra, há algum tempo voluntariamente estendida. Senão, como será o nosso amanhecer se gastarmos todos os nossos dias centrados em nós mesmos? Aprendemos para ensinar e ensinamos para aprender; algo existe em todos nós que poderá ser concedido àqueles que estejam disponíveis à sua recepção. E basta um sorriso ou um abraço sincero para fazer descobrir o sol num amplo céu pelas nuvens enegrecido.

Adoptando uma conduta bastante sincera, em verdade vos poderei dizer, irmãos caminhantes, que não concordo com a maioria dos pilares sociais que erguem o cenário dos nossos dias. Urge a implementação de algo novo e os mais atentos dirão até que tal processo se encontra em marcha. E com a devida razão. Aliás, basta olhar em volta que, nas entrelinhas do horizonte, anunciam-se já as poeiras da mudança. Podemos todos contribuir para esse novo tempo que pulsa por eclodir? Bem, nós somos parte de um todo e, como tal, ele é o resultado de nossos actos. O Indivíduo poderá ser moldado pela sua Sociedade, mas ele é e sempre será o reflexo dessa mesma Sociedade. Ao criticá-la ou ao elogiá-la, estará a denunciar as suas próprias falhas ou as suas louváveis virtudes. Se alguém desejar modificar os trâmites de uma Sociedade, então basta que ele mesmo seja a mudança que tanto almeja ver concretizada. Tudo isto se encontra em nossas mãos. Desejamos modificar os antigos padrões? Dizer «não mais!» às noites de constrangedor silêncio, aos dias de fosca luz, às mentes corruptas que operam sem oposição? Então, que em nosso âmago todos esses elementos se modifiquem primeiro em lugar! Para alcançarmos esse alvorecer, deveremos implementar em nós a mudança que desejaríamos ver implementada, através de nossa actuação e modo de pensar. E não basta criticá-la, sublinhar as suas falhas e, no momento seguinte, seguir viagem rumo a um novo dia, onde precisamente as mesmas falhas tornarão a ser realizadas. No fundo, porque é que o fazemos? As palavras esbulham-se de valor se não forem adornadas pelos actos… Toda a acção, como é sabido, comporta uma específica duração e os efeitos da mesma nem sempre serão de pronto verificáveis, mas, se para o nosso olhar o horizonte é filho do Infinito, então em breve ele o será. Reflectimos nosso Ser no Ser que a todos engloba. Ao nos afirmámos fiéis à nossa verdade, assumindo-a sem qualquer tipo de receio, ao ganharmos a humildade e a coragem necessárias para procedermos à queda do antigo templo que se erguia em nós, aquele que honrava um deus já esquecido, estaremos a enterrar na fértil terra do mundo a semente de uma Nova Era e de todos os valores que a sustentarão. Podemos não ver completa essa magnânime catedral, o monumento dos novos tempos, mas certamente terá sido valoroso contribuir, nem que como uma pequena pedra seja, para uma de suas sólidas colunas.


Pedro Belo Clara.


quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Álbum de fotografias

Numa chuvosa tarde de Domingo, escutando o viril e distante ribombar dos trovões, no seio do meu mais aconchegante conforto, passei o olhar por um velho álbum de fotografias que, evidenciando-se, me despertou a atenção. Parece que, em dias assim, o apelo à evocação é sempre mais forte… Peguei nele e, atravessando todos os passados tempos que nele ressurgiam, demorei-me pelos efeitos que o próprio contar dos anos proporciona a todos nós. Observava rostos que já conheci e que ainda conheço e outros que a custo ia reconhecendo (ah, as durezas do Caminho e seus efeitos!...), além daqueles cujas existências nunca cruzaram a minha – apenas a sua promessa de vida consumida pairou diante de mim. E, assim, ignorando os minutos e as horas, ia analisando cada recorte dos rostos lá captados, o brilho de cada olhar, a sinceridade de cada sorriso. Curiosa é a arte fotográfica… Ou será que me devo referir aos ardis da fotografia? Seja como for, é magnífica (e ao mesmo tempo estranha) a forma como um momento, tão efémero para nossa percepção, pode ser assim captado, como frágil e submissa presa, imortalizado em perecível folha. É como se um suspiro pudesse ser sustido! Como tais objectos são, em sua verdade, os emoldurados quadros das memórias… Manhãs de ouro, tardes inesquecíveis, noites perfeitas… Quantas vezes, no seio de nossa tola ilusão, não desejámos já que fossem eternas? Mas, através de suas graças, essas horas transmutaram-se num hoje infinito. E não se deteriorassem tão celeremente as cores da mente, não amarelecessem as folhas de nossas evocações com o passar das ímpias estações e teríamos sempre em nós o esplendor do que já foi vivido… Mas porque digo que não o temos? Essa é a mais espontânea das considerações que nos assoma, quando confrontados com esse aspecto. Afinal, quantos de nós não se julgam já desprovidos de um esplendor outrora desfrutado?

É claro que nossas escolhas irão moldar as consequências de um amanhã distante…  Tudo poderá nos parecer perdido, desvanecido ou renegado, tudo aquilo que em tempos de outrora brilhou em nossa existência. Mas, se assim for, se nos virmos reflectidos na oxidação de uma época consumida, teremos sempre em nossas mãos a oportunidade de alterar a rota defina (é sempre importante relembrar este aspecto). No entanto, perante a imagem desfalecida, veremos também que, afinal, perpétuo era o brilho do sentimento remanescente, o fruto dessa tal vivência tão querida e desfrutada ao extremo. Eu revia, naqueles pedaços de época, companheiros de uma vida de caminho sorrindo como se o mundo fosse um iluminado palco artístico ou um rio desprovido de desilusões ou tristezas, fosse qual fosse o desígnio do porvir. E, ao deles me recordar, saboreei os seus perfumes de terra distante, pois fi-los de novo viver em mim. Estivessem eles onde estivessem, não os considerei assim tão diferentes, tão gastos ou consumidos pela avidez de uma vida dissimulada - avivei a sua centelha, a sua verdadeira essência. Oh! O que dez anos podem fazer a um Homem? Mudarão realmente alguém? Ou todos estamos imunes às investidas de uma impiedosa contagem? Como em todos os demais assunto, depende do ponto de vista adoptado. Além desses companheiros, observei igualmente aqueles que de mim cuidaram, quando retornei às planícies deste mundo, inspirando as pétalas de sua juventude. E eu? Era somente uma criança que corria na inocência de um tempo, em silêncio aprontando-me para o caminho que então se esboçava. «Oh!...», dirão muitos de vós, «O que o cair das folhas de um velho calendário pode fazer a um Homem?!...». Nada, na verdade. Ultrapassamos as etapas que o Caminho nos cria em nome de nossa evolução, suportamos as marcas de cada queda, suspiramos e duvidamos em muitas curvas tenebrosas, mas, se a Amargura não nos tornar amargos, nunca em nossa essência mudaremos; apenas ostentaremos os indícios de nossa aprendizagem. E isto se, ao longo de todo o percurso, por mais incessante que seja o palpitar da Dúvida, jamais olvidemos quem, no fundo, somos. Essa constatação, depois de feita, nunca deverá ser renegada; é a nossa identidade, as linhas de nossa personagem material salpicadas pela personalidade cósmica que somos. Há e haverá sempre, em nosso rumo, Sol, Chuva, Tempestade e Bonança – por todos eles realizaremos nossa travessia, assim com o fizemos no passado, seguros à verdade que nos compõe. Poder-se-ão passar dez, vinte, trinta ou cinquenta anos, não importa… O que representa o tempo para as Consciências Universais que detemos? Um mero grão azul num extenso areal dourado…

Fechei o álbum e murmurei: «No Passado reside a lembrança, no Futuro a nossa esperança; mas, no Presente, sublime e imbatível vibra a Existência». E esse é o segredo do Infinito que sempre almejamos tocar. Colectamos tantas flores ao longo de cada passada e várias são aquelas que nos ferem com seus espinhos… Mas os corações falarão sempre a mesma linguagem. A Vida é uma caminhada ganha, jamais perdida.


Pedro Belo Clara.


quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Dádivas

Todo o Homem possui em si uma luz que gera os seus peculiares efeitos, quando por acções ou por palavras materializada for. No fundo, reside em si uma força facilmente concretizável, se assim o desejar, algo que é sua pertença e que, como tal, poderá ser ofertado – sem jamais empobrecer o seu dador, somente enriquecendo o recebedor. Todos somos caminhantes e, em determinados momentos, todos nós compartilhamos o mesmo troço de estrada ou o mesmo tempo de viagem. E, no seio de tal convivência, quantos de nós não encontram nos pilares fortificados de seus semelhantes, os transmutadores de suas fraquezas, a génese de sua coragem? O Caminho é um lugar de múltiplos efeitos e realizações, sendo uma delas a aprendizagem. Se nos permitirmos aprender com a sabedoria de terceiros, não só estaremos a cultivar e a desenvolver o nosso próprio saber como também nos estaremos a preparar para os tempos vindouros, quando outros, chegada a sua vez, tentarão descobrir em nossa força os motivos do seu fortalecimento (a lapidação de suas fraquezas). Tudo se conjuga, como assim se constata, tudo se remete a um perfeito encaixe entre vários saberes, várias visões. Qual delas a mais perfeita? Qual delas a mais fiel, justa e verdadeira? Bem… Qual é o maior valor de uma orquestra? O solo dos instrumentos ou os refrãos onde, afinados, todos de conjugam e se complementam? Cada Homem possui a sua verdade e somente ele a deverá desenvolver, estudando e aprendendo com as demais.

Somos ou não os faróis uns dos outros? Sem nada querer ou forçar, apenas respeitando e tolerando as díspares formas de contemplar o mesmo horizonte, iluminamos com nossa luz interior (a luz intelectual em harmonia com a luz da Alma) o espaço que nos circunda. E, com o conceder dessas puras dádivas de conhecimento que todo o caminhante possui de forma livre, muitos serão os barcos que, por entre o negrume das noites sombrias, encontrarão a sua forma de regressar à margem. Mesmo assim, é importante lembrar que o farol apenas ilumina, não comanda o barco que, por si só, segue a rota definida no mar turbulento.

No Caminho existem múltiplas oportunidades de nos colocarmos à prova, de nos dedicarmos à realização daquilo que mais almejamos e à aplicação de nossos conhecimentos de viajante. Ao aproveitá-las, estaremos a aceitar o movimento fluido do seu fluxo de ocorrências, contribuindo para a mudança que desejamos ver implementada, aprendendo a ser quem sempre intentámos ser (nós próprios, no fundo – simples e autênticos). Mas valerá fortunas sentimentais toda a dádiva que ofertada seja sem verdadeira vontade, sem verdadeiro sentir? Pergunto: que sabor terá uma refeição preparada sem a mínima dedicação, empenho ou amor à tarefa elaborada? Então, porque o fazemos em tantas ocasiões? Consideramos, no seio de uma tola ilusão, que nossa imagem sai reforçada junto de outros? Porque insistimos em vestir apenas as roupagens dos “filantropos de ocasião”? Mais facilmente alimenta uma boca esfaimada aquele que pouco ou nada tem, do que aquele que promove, nobre e digno, campanhas contra esse flagelo… Jamais farei juízos de valor (quem sou eu para tal?), cada um responde por sua consciência, apenas pretendo sublinhar a espontânea e dedicada atenção ofertada, a dádiva mais pura a ser concedida. Essa sim, é a minha intenção – que possamos partilhar o nosso rico e luminoso interior com os demais irmãos de caminho, honesta e verdadeiramente, sem olhar a quem nem a qualquer porquê. Será que uma árvore escolhe a quem é que dará seus belos frutos? Não. Ela simplesmente cuida de sua oferendas, tornando-as doces e carnudas, até ao momento em que alguém com elas sacie o seu apetite. Em quantas ocasiões, então, assumimos a lição que as árvores nos concedem? É delas a bênção da dádiva, a raiz do vero Amor fraterno, Incondicional, inveterado já naquele que, através de seu pessoal exemplo, se afirma entre caminhantes como um luminoso farol no ermo da margem mais rochosa. Empreendesse-mos todos nós, de formas distintas e igualmente válidas, esse passo, essa direcção, e uma alva e casta manhã, plena de Luz, não tardaria a irromper por entre as Trevas do conformismo e do não conhecimento. No meu mais íntimo silêncio, apenas me deslumbro com a vinda desse sonho…


Pedro Belo Clara.


quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Ausência de Amor

Há algo que polvilha esta nossa vivência de estrada, algo que reside em todos nós, ainda que exíguo, e que se pode reflectir no mais simples e breve do acontecimentos ou actos; algo frágil e de incomensurável beleza, algo tão árduo de manter em harmonioso equilíbrio, algo que, um dia, se plantadas e cuidadas forem as suas sementes, eclodirá na mais magnífica das flores – o Amor. Ao cogitar e escrever sobre sua peculiar condição, evoco a sua ausência e as múltiplas ocasiões em que tal se verifica, bem como as consequências de tal aspecto. Como somos jovens e imaturos, em termos de consciência, e como estamos ainda a aprender as artes deste sublime sentimento… Todo o Caminho é um palco de aprendizagem e de ensinamento, mas quantos conflitos não já se geraram pelo Amor se encontrar extinto ou banido das vidas daqueles que os incentivaram? Quanta ira, ódio reprimido ou angústia, existirá nos corações de quem se fechou ou de quem nunca tocou no semblante do Amor?

Quanto mais nos embrenhamos no extenso labirinto que percorremos diariamente, mais compreendemos que nesse sentir habitam as respostas às mais incessantes questões, e que a sua revelação implode dos antros do pensamento somente no instante mais propício. Muitos de nós, por nunca o termos recebido (resultado, talvez, das singulares experiências de quem caminha), não sabemos como o ofertar; assim, limitamo-nos a repetir padrões de comportamento antigos, dos quais fomos, em tempos, uma parte integrante. E fazemo-lo pois, para a nossa subliminar percepção, eles são a imagem do Amor – a sua escassez ou total ausência cria, paradoxalmente, uma imagem daquilo que ele é, sob nosso julgamento. Então, revelamo-nos agressivos, indiferentes, soberbos, ríspidos, gélidos como uma pedra isolada, rabugentos e avarentos, apenas porque esses foram os exemplos dados, aqueles com os quais crescemos e vimos impressos naqueles que de nós cuidavam. Como quebrar, então, todo este circular processo? É possível que o Amor medre numa árida terra, aquela que nunca o recebeu?

Invertendo a corrente do pensamento, isto é, dando a terceiros aquilo que gostaríamos que fosse (ou tivesse sido) dado a nós próprios, mas que, por diversos motivos, nos foi vedado, estaremos a sair de uma roda imensa que gira sem cessar; alteramos frequências com novos e corajosos actos e, assim, consolidamos a nossa transmutação. No fundo, esta empresa até se revela simples de realizar. Talvez aí resida o seu maior segredo… Quantos não considerarão o Amor complexo? Mas não bastará um simples beijo, uma sincera carícia, um fraterno abraço, uma sentida celebração, um sorriso prazenteiro ou uma doce palavra de conforto ou apoio, para o Amor fluir e se materializar em quem decide permitir a sua entrada? Se formos audazes o suficiente para rasgarmos esses padrões velhos que apenas nos aprisionam, não só iremos sarar as feridas deixadas pelas passadas experiências, como também permitir que quem nos rodeia conheça um dos inúmeros rostos do Amor, apenas visto sob a nossa pessoal perspectiva. Quem simplesmente prosseguir nesse fluxo de comportamentos, acomodar-se-á e resignar-se-á perante aquilo que sempre existiu em si e que apenas requeria um breve polimento para refulgir com todo o seu esplendor.

O Amor existe em cada oportunidade que nos é concedida, mas o primeiro passo de aprendizagem terá de ser por nós esboçado. É claro que um indivíduo apenas se modifica se assim o desejar, por mais incessantes que possam vir a ser os pedidos daqueles que lhe serão queridos, mas todo o companheiro poderá auxiliar o seu semelhante a ser um melhor caminhante, seja qual for o laço que os una (familiar ou amigável). A ausência do Amor já fez germinar tanta amargura em todo o percurso que nós, Homens, temos construído… Ideias pré-concebidas, diálogos nunca expostos, agressões impulsivas… Tudo partilha a mesma origem. Mas existem diversas formas de Amor e de o fazer expressar. Que possamos escolher a nossa e cumprir a tarefa pessoal que nos cabe, pois é hora de alterar o fluxo deste rio e deixar crescer em nosso âmago a força que tudo transforma, que tudo constrói. E que tenhamos a coragem e a necessária humildade de nos dirigirmos a nossos companheiros de viagem e de lhes pedirmos lições sobre como amar, sobre como poderemos ser melhores amigos, irmãos, filhos, netos, pais e até avós! Possuímos as sementes, meus irmãos, elas estão em nossas mãos e, juntos, poderemos cultivar o mais deslumbrante dos jardins que a nossa sociedade já contemplou. Toda a mudança poderá ser implementada, se for primeiro implementada dentro de nós. Abram os vossos corações ao mundo e espalhem as sementes que possuem guardadas em vossos alforges! Assim, terá sido lançada a primeira de todas as pedras que sustentarão os edifícios da Nova Cidade.


Pedro Belo Clara.


quarta-feira, 2 de novembro de 2011

A Derradeira Viagem

Nesta existência de Caminho, múltiplos são os viajantes que deixam em nós a sua marca, o seu indelével e íntimo perfume, ainda que as futuras ocorrências de nossos percursos não mais se entrecruzem. Mas, residirão sempre em nosso ser as memórias de tudo o que foi vivido e compartilhado, algo que nos auxiliará a evocar a magia do vento que soprava naqueles tempos idos. E mesmo as recordações mais amargas, caso nos disponibilizemos ao perdão, irão adquirir, com o tempo e a distância, um sabor muito mais doce – uma ampla compreensão dos acontecimentos permitirá isso mesmo. No entanto, mais cedo ou mais tarde, sabemos que irá eclodir a hora em que tais indivíduos, estando ou não fisicamente mais próximos de nós (pois tal não é realmente significativo), partirão até terras distantes, paragens longínquas a toda a material percepção, empreendendo, por fim, a mais arrojada de todas as suas viagens, aquela que, por curiosa constatação, será igualmente derradeira (pelo menos, durante uma específica fracção de tempo). Este acontecimento é deveras inevitável, e todos aqueles que um dia decidiram realizar a tamanha empresa, sabiam de antemão que chegaria à hora em que suas presenças iriam ser reclamadas por seu lar, o seu verdadeiro lar.

Mesmo assim, o apartamento de tais figuras, aquando de sua ida, será sempre sentido por aqueles que, de uma forma ou de outra, revelaram o seu mais sincero amor para com elas, quer tenha sido através de um gesto, um beijo, um sorriso ou numa breve palavra. Por mais conhecimento ou sabedoria que um Homem possa possuir, tal facto verifica-se em pleno. E um apertado sentimento tarda em se amenizar. Todos nós, no fundo, já “perdemos” alguém que nos era imensamente querido e sentimos o peso do vazio que tal ausência nos legou. Um maior ou menor conforto poderá assistir-nos em momentos assim, dependendo das crenças com que cada viajante se muna, mas, mesmo sabendo que tão caro companheiro se encontra tranquilo e seguro em um qualquer outro lugar, nunca deixamos de sentir um estranho pulsar que nos assoma o coração e que, como lágrimas emudecidas, escorre pelo rosto da resignada aceitação. Nessas alturas, sentimos que o mais proveitoso dos saberes se priva de seu valor. Na realidade, só quem não caminha, só quem não ama ou vive é que poderá verdadeiramente afirmar que jamais um resquício de tal sentir o conquistou.

Em meu considerar, caros irmãos caminhantes, essas tão amadas figuras apenas partiram para longe nós, realizaram a sua “derradeira viagem”, e, nos verdes prados onde se recostam, aguardam a vez em que também nós auscultaremos o apelo da última das aventuras terrenas. Não me dói, sinceramente, a incerteza, tampouco a dúvida de seu bem-estar, apenas uma ilusória ausência de seus gestos, carinhos, discursos, olhares, sorrisos e pensamentos. E digo ilusória pois, no fundo, eles viverão sempre em nós; fazem parte de nós, povoam nossas memórias e são a génese de nossa força, coragem e motivação, aquela com que cultivamos o mais terno de nossos sonhos. Será que, considerando tudo isto, “perdemos” de facto alguém? Não. Nada perdemos, apenas ganhamos. Por todas essas vivências partilhadas, ganhamos sempre um pai, uma mãe, um avô, uma avó, irmão, irmã, amigo ou amiga, autênticos companheiros de Caminho. De todos aqueles que hoje se reconfortam em verdes prados e que, num certo dia iluminado ou chuvoso, conheci, trago em mim suas recordações, evocando-os em meus pensamentos e honrando-os com minhas acções.

A vida é feita de etapas e se nos dispusermos a tal ultrapassá-las-emos. Teremos sempre a nossa treva, mas não deixaremos de sonhar com o nosso amanhecer apenas porque o dia se apresenta mais sombrio. Eles realizam a sua viagem, mas nós, aqueles que os amam, somos colocados perante as provas de um novo processo de desenvolvimento pessoal. Inevitavelmente, se decidirmos avançar no nosso trilho, há algo que se transmuta em nós. E na nova manha que, por fim, surgirá, seremos seres renovados, com o brilho de todas as anteriores experiências a fazer-se sentir da forma mais resplandecente. Teremos feridas, teremos virtudes, mas seremos caminhantes que dignamente empunham o estandarte do Universal Amor. Afinal, amámos e fomos amados. Existe bênção maior que essa?


Pedro Belo Clara.  


quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Companheiros

O episódio que hoje aqui compartilho, foi experimentado por dois sinceros amigos de minha pessoa, irmãos desta longa viagem e que há muito decidiram cruzar as suas existências. Estes companheiros de caminho, por razões que tantas vezes caem no esquecimento, demoravam-se pelas incidências das banais desavenças de quem, na verdade, se ama e, principalmente, vive, chora e sorri. Sei que tal assunto, tão pessoal, não era de minha responsabilidade, tampouco um fardo que eu deveria carregar por si só, e em inúmeras ocasiões questionei mesmo o meu direito legítimo de intervir. Decidi, por fim, não o fazer, embora soubesse que o mais ínfimo dos actos traz em si a sua consequência, o seu natural impacto – e isso seria o tudo que me cabia em parte.

Os irmãos de quem falo, procuraram-me à vez, expondo cada um dos seus válidos argumentos, os motivos de tal questão, as suas dores expressas e a dificuldade sentida em retomar o diálogo entre ambos. Esse seria sempre, no fundo, o meu mais sincero conselho, pois, querendo, o diálogo tranquilo auxilia a revelação do mais íntimo dos sentimentos reprimidos, dos pontos de vista ignorados ou não entendidos. Infelizmente, nem sempre o Homem se encontra apto para tal e, recorrendo a defesas absurdas, temendo um ataque invisível ao seu orgulho, encerra-se nas muralhas do seu silêncio absorto. Ambos tinham a sua razão; por isso, se o diálogo conseguisse subsistir entre ambos, certo estaria eu de que a tola querela se dissolveria.

Assim, permanecendo em minha posição neutral, aquela que minha Consciência ditava, optando sempre pelo bom senso, sentei ambos na minha mesa e, juntos, partilhámos uma bela refeição. Eles anuíram o convite – o primeiro passo para a suprema resolução das discórdias – e, nesse dia, antes de inaugurarmos o simples repasto, como que encontrando um pretexto de “ocasião especial”, seleccionei uma garrafa de um dos melhores vinhos que possuía armazenados. Um desses caríssimos amigos tentou demover-me, justificando-se pela não necessidade de pompa na situação, mas eu insisti e ainda me recordo das palavras que proferi: «abro esta garrafa, das melhores que possuo, apenas para que nos possamos lembrar de que todo o dia é digno de ser celebrado, e que todas as palavras retidas deverão ser no hoje proferidas, antes que o amanhã se revele tarde demais…». Mas o silêncio ainda teimava em comandar os minutos daqueles momentos de degustação… No entanto, desprovido de qualquer urgência, sabia, no fundo de mim mesmo, que a situação se resolveria por si e no seu tempo mais adequado e propício.

Perto do final da refeição, gabava um deles a qualidade daquele vinho aveludado, apesar de possuir já um certo depósito, típico em bebidas que, daquele tipo, adquirem já uma certa maturidade. Então, declarei-lhes que naquela ocorrência morava o reflexo de muitos Homens, aqueles que exigem sempre de seu semelhante a sua luz mais luminosa, amando-os e estimando-os profundamente por isso, mas que renegam a sua treva mais sombria… Apreciamos o sabor de um excelente vinho, mas suspiramos queixumes por causa do depósito dos anos? A dor fecha a porta ao perdão, é certo, mas só sabe perdoar aquele que entende verdadeiramente as artes do Amor; e o Amor comporta esse mesmo acto, o de desejar a luz mais luminosa de nosso companheiro ou companheira, respeitando, tolerando e até amando a sua treva mais sombria – e é assim que alguém se poderá revelar merecedor do amor de terceiros.  

No término daquele almoço, junto ao alpendre, vi aquele irmão e aquela irmã, por fim, abraçados, permitindo o fluir de todo o carinho que residia dentro de seus corações. Nem sempre a tripulação de um barco rema na mesma direcção, bem sei, e nada de incomum nisso existe, mas ali, naqueles doces instantes, entenderam que quando as palavras já nada podem contra os muros do silêncio, um abraço sincero e sentido consegue quebrar a clausura e reacender a fogosa chama do Incondicional Amor.


Pedro Belo Clara.


quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Os três livros

Tenho, numa determinada prateleira de minha emadeirada estante, três livros: o mantido, o lido e o vivido. O mantido, impecável em sua conservação, jamais foi lido e muito menos vivido; apenas foi conservado e ali se encontra, assim, ocupando o seu espaço, sem nunca ter sido desbravado por olhos ávido de curiosidade ou navegado por dedos deveras irrequietos. O lido, por sua vez, já desfrutou da possibilidade de ser aberto e explorado, com suas palavras lançadas na frescura de um vento viajante que, no entanto, rapidamente as levou em seu sopro incessante. Por fim, o livro vivido, aquele que tanto me deslumbra e me faz indagar, um livro tão gasto que se adorna de andrajosas vestes de indigente, sublinhado e anotado pelo carvão de um lápis desrespeitoso, de alvura corrompida, virgindade usurpada e decência renegada… Haverá alguém capaz de o amar verdadeiramente ou, pelo menos, de admirar a imagem daquilo que ele é? Eu; eu amo-o, admiro-o e respeito-o autenticamente.

É verdade que nutro sentimentos cordiais para com os restantes livros, aceitando-os em suas diferenças e em seus percursos percorridos, sabendo que, no seu silêncio, também eles almejam ser um dia como o seu irmão – livros lidos, sentidos, vividos. Embora permaneçam praticamente invictos, orgulhosos de sua condição conservada, altivos em sua honradez transmitida, suspiram sempre as linhas desse seu desejo tão íntimo e oculto. Pois o vivido, tão tímido e vexado por sua condição, um mendigo que esmola roga às artes da bela aparência, é o único que se distingue por ser verdadeiramente quem é – um livro experimentado, cuja sabedoria foi lida, entendida e aplicada nas demais circunstâncias da existência de quem o consumiu. São livros assim que nos concedem os melhores conselhos, os confortos mais confortáveis, os alívios mais ansiados e demandados. É obvio que os livros de índole idêntica a este apresentam as suas marcas próprias, indistintas feridas que, provavelmente, jamais sararão, embora conservem sempre em si a mais honesta das aprendizagens.

Cada um de nós, caminhantes do longo Caminho, assume, de certa forma, o carácter de um desses três distintos livros. Assim, somente se revela ainda mais absurdo o olvidar do livro vivido, baseando-se unicamente o inexperiente julgamento na sua aparência tosca. O seu brilho aparente poderá estar quase a se desvanecer, é certo, mas um outro cintilar refulge no âmago de sua condição e do seu simples ser, cada vez mais enriquecido e vivido – o cintilar da experiência assumida. Todos possuímos as nossas feridas, o resultado de anteriores etapas ganhas e perdidas; eles definem a nossa força e as nossas escolhas, são o motivo da nossa aprendizagem e o despoletador da memória da lição entendida. Não existe absolutamente nenhum descrédito em sermos livros vividos, meus queridos irmãos caminhantes; todos temos nossas dores. E elas são o significado de uma existência ganha e vivida, são o manto que adorna todo o caminhante que, a cada manhã, se ergue perante o sol nascente e se apronta para mais um dia de caminho, seguro de que encontrará Dor e Júbilo, Chuva e Sol. Mas, mesmo assim, com uma bravura ímpar tão comum àqueles que caminham, àqueles que são ou decidem ser livros vividos, gratifica-se pelas bênçãos que o assistem e de novo parte em direcção do horizonte mais longínquo.

Pedro Belo Clara.



quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Ocorrências

Num aprazível entardecer, desfrutando da fresca sombra proporcionada pela frondosa árvore onde me recostava, evocava eu as passagens da minha passagem pelos caminhos desta Terra, enquanto as andorinhas, atarefadas, já se preparavam para partir. Recordando cada recorte da paisagem admirada pelo meu olhar de caminhante, cada encanto dos dias vividos, cada desfecho das histórias que assinei com o nome desta personagem que aqui encarnei, veio um vento suave que me reconfortou e acalentou a memória revivida. De súbito chegou e de súbito partiu para outras paragens, deixando apenas em minha boca o paladar da vivência evocada e o perfume que trazia em si desde terras distantes. Então, como que num flash de luz no discernimento, entendi que todas as ocorrências de uma só existência são como aquele vento que afagou o castanho de meus cabelos: vão e vêm; passam por nós, deixam em nós o seu distinto aroma, a sua mais indelével marca, aquela que, num dia tranquilo como este, iremos recordar com a mais terna das saudades.

É claro que toda a história pessoal, composta por viagens, experiências e pó de Caminho, apresenta os seus particulares desencantos, aspectos que, à partida, não sobejariam qualquer resquício de saudade ou benquerença. Mas o que seria uma rosa se se visse privada de seus espinhos? Conservaria ela a mesma beleza, autêntica e selvagem? Quem caminha de semblante erguido, atento às oscilações de um horizonte ilusoriamente estável, quase imóvel, compreende que cada acto, cada acontecimento serve um determinado propósito e que tudo se desenrola e existe como uma bênção que nos é assistida (e sobre esse assunto já muitas das anteriores entradas se debruçaram).

Múltiplas são as vias que nos guiam até ao mesmo fim, mas em algum momento os divergentes pontos de observação acabam por se harmonizar e por se unir. Chegará o dia, irmãos caminhantes, em que, munidos de um amplo entendimento e de uma humilde aceitação (humilde, não subserviente), compreenderemos que, por detrás de um extenso e aparente Mal, subsiste um infinito Bem, o Bem que será a centelha que incendiará a nossa fogueira, onde das cinzas remanescentes se erguerá o Ideal que habitará na casa da renovada Consciência Humana.


Pedro Belo Clara.


quarta-feira, 5 de outubro de 2011

O Sonhador

Certa manhã, o Caminho prendou-me com um encontro deveras peculiar: um simples homem, companheiro fiel das viagens pelos pensamentos, detinha-se junto da estrada, introspectivo, fixando uma pedra como se desejasse movê-la apenas com o olhar. Passei junto dele, curioso, e logo despertou o fantástico mecanismo despoletador de diálogos. Assim, troquei algumas palavras com aquele irmão, mais um intrigante pedaço de Luz que se ocupava de suspiros e breves lamentos, e demorei-me, como quem degusta uma finíssima iguaria, nas palavras e nas frases compostas pela douta melodia que ele entoava. Falava de loucuras, de decisões cruciais, de persistentes indagações que repudiava e, ao mesmo tempo, amava por sabê-las impulsionadoras de novas situações evolutivas. E versava e filosofa sobre aspectos que desconhecia e outros que apenas havia escutado em ecos de histórias distantes, enquanto que meu Ser se ia reflectindo de uma forma cada vez mais nítida no definir e no afirmar daquele companheiro. Sucediam-se os instantes e assim ficámos, em monólogo presencial, assistindo ao crescimento de algo único, de uma partilha silenciosa de algum conceito grandioso. Mas, de súbito, perante meu semblante já confuso (confesso) mas não menos maravilhado, sua tristeza se metamorfoseou em espontâneo júbilo e convicção certa e inexpugnável. Que acontecimento deveras fantástico esse, a alquimia dos sentires no auge de seus efeitos! Sorriu e saudou-me como caminhantes que éramos, seguindo depois o seu trilho, rumo a um horizonte íntimo e inalcançável.

Conheci esse homem, ou partes dele, naqueles momentos de convívio, e deparei-me com a sua peculiar loucura naquele preciso instante. Se algo há que se lhe possa atribuir, então esse algo é a espontaneidade. Livre e desprendido como uma criança, como uma tábua de inscrições que nunca foi utilizada, ele, que se dizia sonhador, trazia em si vestígios de um passado de dor e de frustração, mas estava apto (ou melhor, decidido) a enfrentar os novos dias com as cores de seus belos sonhos. E era essa a sua loucura: perante a desilusão de quem planta no quintal dos sonhos moribundos, sorria e formulava um novo sonho, mais forte e mais brilhante que nunca. Por cada sonho que tombar, um outro se deverá erguer à luz do dia mais excelso! Era essa a sua loucura, sim, talvez sabedoria ou singular forma de caminhar pelas florestas de sua existência, mas, naquela despedida, observei nele, como numa aura, o refulgir de novas cores, rodeando e abençoado o seu porvir.


Pedro Belo Clara.



quarta-feira, 28 de setembro de 2011

A sobremesa

Da mais banal das situações podemos retirar a mais proveitosa das lições, tal como até aqui temos conseguido constatar. No seguimento dessa conversação, irei hoje partilhar convosco, meus caríssimos irmãos de Caminho, mais um desses valiosos exemplos.

Há muito pouco tempo atrás, durante uma serena e sincera celebração, terminada a honesta refeição que a todos aconchegou, povoou-se a sólida mesa com as mais belas e apetitosas sobremesas (como, aliás, é costume no término da refeição principal). Uma dessas sobremesas, contudo, destacava-se não pelo seu finíssimo aroma ou apresentação de pasmar, mas pelo seu aspecto deveras tosco e descuidado. Mesmo assim, espicaçado pela curiosidade, ao observar que mais nenhum dos demais irmãos com quem eu partilhava aqueles momentos estava decidido a prová-la, optei por investir sobre ela e indagar sobre o seu sabor (no fundo, aquilo que verdadeiramente importava saber). Espantaram-se, talvez, os mais cépticos, receosos, tímidos ou indecisos, quando exaltei, no auge de minha sinceridade, a magnificência daquele doce. A sua textura era óptima, os ingredientes que o compunham encontravam-se harmoniosamente casados e o seu sabor era autenticamente cativante! E bastou revelar tais qualidades, dignas dos palatos mais exigentes, para que todos já o quisessem provar. Surpreso ficou, obviamente, o caminhante que o havia confeccionado, também ele presente naquela longa mesa de madeira. Afinal, nem no dia anterior, quando o apresentou a seus convivas, estando ainda mais aprimorado de aspecto, se atreveram a prová-lo. Naquele momento, fruto de diversas deslocações e de um negligente transporte, tinha preservado somente o seu sabor distinto, não a firme aparência. E assim disse eu, naquela mesa recheada de sobremesas e de caminhantes dispostos a degustá-las, que um bom rumor atinge uma profundidade maior do que uma boa aparência.

Imaginemos agora, seguindo esta sabedoria, aquilo que não podemos fazer por nosso semelhante, caso o fogo de um verdadeiro impulso assomar o nosso coração… Todos possuímos os nossos círculos de relacionamentos, sobre os quais exercemos sempre um determinado grau de influência. Uma boa palavra, de nossa parte, poderá em diversas ocasiões revelar-se um escudo protector para quem dele mais necessitar, uma mão que se estende para resgatar quem resvalar na lama da injúria e da injustiça. Possuir um nível de consciência mais abrangente também arrasta consigo novos tipos de responsabilidade. É sabido que cada coração tem os seus impulsos, e que cada impulso gera uma acção. Se tal aspecto despontar em nós, seja qual for a ocorrência, que nos possamos recordar da singela lição que aquela deliciosa sobremesa nos dispensou!

Aquela tarde, por fim, acabou por trazer novos desenrolares de fraterno festejo, mas, naquele instante de percepção, abençoámos o Caminho pelas valiosas mensagens que nos transmitiu. Seja através do silêncio de uma noite ou do chilrear de um pequeno pássaro, ele é como um Pai que sabiamente aconselha os filhos que tanto ama.


Pedro Belo Clara.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

A Gata e a Porta

Indagando sobre os exemplos que as demais ocorrências do Caminho nos concedem, por meio de seus múltiplos intervenientes, é possível concluir que a sua revelação ocorre quando dela mais necessitamos. É como se existisse uma espécie de conversa entre o caminhante e o Caminho, com este a oferecer as respostas ou os indícios da solução de nosso problema ou questão. Com o discernimento adequado, isto é, com a mente disponível para tal hipótese, tornamo-nos capazes de os entender. A sua fala é silenciosa e longo poderá ser o caminho de sua aprendizagem, até nos revelarmos aptos a lê-la ou a escutá-la. Mas, no fundo, tudo o que necessitamos encontra-se em nosso redor e ao nosso acessível alcance; por vezes, basta empreender o esforço de quem alonga um braço para que o meio almejado possa ser encontrado e, posteriormente, utilizado.

Um dos sentimentos mais recorrentes em quem atravessa as alamedas de dúvidas e questões, é a carência ou o fraquejar de uma crença – em suma, um titubear de Fé (seja qual for o chão em que tal alicerce se apoia). Segue-se o relato de um desses “exemplos” (ou lições) que o Caminho nos oferta, do caminhante que eu sou, para si, leitor, meu companheiro nesta longa viagem de vida.

Num desses dias banais de vivência e repouso, a minha gata (companheira de tantos anos) fez-me evocar uma das mais belas artes deste caminho que é a Vida. Estando ela junto a mim, tranquila, entregue ao sossego de seu descanso, decidiu que os seus súbitos afazeres se detinham numa outra divisão do lar que nos abriga (nem perguntem pelos seus motivos, pois eles, em tantas ocasiões, permanecem ocultos até da consciência de quem os empreende). Contudo, a porta que oferecia entrada a essa divisão encontrava-se fechada, estado a minha simpática amiga impossibilitada de lá entrar. No entanto, terá sido esse o obstáculo que a demoveu de seu propósito? Não. Com a típica tenacidade felina em ebulição, quedou-se junto da entrada e, quieta, aguardou a sua abertura. Dirão alguns que é comportamento irracional, pelo menos absurdo; direi eu que é um extraordinário sinal de Fé. Conhecendo tão bem a matéria que compõe esse bichinho tigrado, devo – por bem – explicar: no seu âmago, sendo incapaz de abrir tal porta, ela sabia que, mais cedo ou mais tarde, alguém a abriria por ela. Não se trata de comodismo, mas sim de “hábito de acreditar”. Em inúmeras ocasiões anteriores, eu já havia feito o mesmo; por isso, ela já sabia que em breve surgiria uma mão salvadora, pronta a cumprir a sua tarefa. Aprendeu a confiar e a acreditar em mim mesmo e, como tal, a minha intervenção nestes acontecimentos era sempre dada por garantida.

No fundo, como um viajante que conhece e confia nas artes e ocorrências do Caminho, a minha companheira listada acreditou, manteve-se fiel ao seu propósito (acreditem que pouca coisa a demoveria de lá) e aguardou a realização do seu desejo momentâneo. Quando entendemos, interiormente, que nada mais é humanamente possível de concretizar, entregamos nossos planos ao fluxo da vida e aguardamos a sua desenvoltura (como disse em entradas anteriores: em certos dias, regamos a nossa plantação; noutros, a chuva encarrega-se disso mesmo). E a porta? Terá sido, afinal, aberta por minha mão? Bem, perante tamanha crença e perseverança, jamais poderia ignorar tal exigência…

É curioso como os demais seres que partilham as suas existências connosco conseguem, no auge da sua sabedoria mais instintiva, mais subjectiva, oferecer-nos provas de válidos e de não menos notáveis comportamentos perante cada obstáculo, cada situação forjada pela desenvoltura da Vida. Nesses momentos em concreto, considero até que a sua simplicidade é bem mais profunda que o nosso saber de quotidiano humano, superficial.


Pedro Belo Clara.



quarta-feira, 31 de agosto de 2011

A teia de aranha

Por vezes, demorando a nossa presença pelos trâmites do caminho que decidimos desbravar e conquistar, basta focar a nossa atenção em algo que, naquele momento, se desenrola bem perto de nós, para que nos seja concedida a graça de um sinal. Procuramos sempre satisfazer as nossas perguntas mas, por vezes, elas são respondidas pelas desenvolturas que eclodem à margem de nós mesmos – simples acontecimentos e curiosidades que consideramos banais. É um facto que as respostas tão ambicionadas têm sempre o som de nossas próprias palavras, mas o Caminho, nas suas particularidades, oferta-nos lições, valiosas aprendizagens prestes a serem apreendidas por quem nelas atentar.

Sempre que indago sobre tais circunstâncias, evoco a seguinte situação: tempos atrás, uma pequena aranha alojou-se por detrás de um dos vidros retrovisores de meu carro, sem que eu de nada soubesse. Aliás, a sua presença só foi denunciada por uma longa teia tecida no ângulo entre o referido vidro retrovisor e o vidro lateral, no lado do condutor. É claro que, embora respeitasse tão magnífica obra, vi-me obrigado a destruí-la – a pequena aranha, essa, lá continuou no seu refúgio habitual. No entanto, no dia seguinte, estando pronto a usufruir dos préstimos do meu veículo, deparo-me com a afamada teia, erguida no mesmo local. Decidido a manter a aparência de meu carro deveras aceitável, voltei a pegar no mesmo pano de flanela e a destruir a singela fonte de sustento daquela aranha. Mesmo assim, nos restantes dias, e continuando eu a desfazer os filamentos de tal teia, ela continuava sempre a surgir, sólida, sublime e altiva. De facto, passei a respeitar o carácter daquele nobre bichinho pois, por mais que sua obra se desmoronasse à mercê de uma mão destruidora, logo se aprontava a reerguer o seu empreendimento, tão convicta que estava de seus decididos intentos.

Hoje, já a aranha terá procurado um outro local mais calmo e profícuo à recolha de alimentos, mas o seu exemplo é deveras notável. Muitos certamente se acomodariam ao ver a sua obra desfeita, mas outros encontrariam precisamente nesse acontecimento a força para se reerguerem. E, durante aquele tempo, essa foi a escolha daquela aranha. Que podemos nós, então, aprender com esta simples ocorrência do Caminho e suas circunstâncias? O firme acto e a sólida convicção de quem vive sob um constante testar de suas ideias, projectos e crenças. A construção poderá revelar-se frágil, mas forte deverá ser o carácter que a sustenta. Afinal, por mais escondida que esteja, em todos nos reside uma pequena aranha como aquela.


Pedro Belo Clara.



quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Etapas e Desafios

A espera, o período de passividade, é um ardil complexo de entender e de assumir, nem que seja pela sensação de que algo nos escapa e de que estamos imersos numa tortuosa escuridão. Isto serão as sensações de alguém duvidoso, aquele que ainda procura assumir os novos entendimentos que lhe foram concedidos pelas experiências do Caminho, não daquele que se mostra já sabedor e, como tal, confiante e sereno perante o porvir. Não há qualquer distinção entre ambos, senão a diferença entre aquilo que já foi ultrapassado e aprendido durante a peculiar vivência. De facto, quem dobra uma esquina observa com mais clareza e amplitude a rua que a partir daí se desenvolve do que aquele que ainda não alcançou tal local. Este aspecto jamais deverá dar a sensação de que um alguém está a ser colocado na dianteira do percurso, especialmente por motivos ditos (ou entendidos) dúbios; o respeito e a tolerância entre os demais são a base de todo o tratamento – uns adiantam-se e outros atrasam-se no caminho, pois todos possuem o seu tempo; ninguém é melhor que seu semelhante, apenas… diferente e único. E é um direito ser-se respeitado e tolerado por isso.

Ainda assim, os tempos de espera, ramificações de um “tempo de trevas” (embora relembre que “da obscuridade nasce a luz”) são comuns a todos nós. A única alteração que se opera é ao nível da percepção, do entendimento e, posteriormente, da acção (ou da forma de actuação). Afinal, nem todos nós sabemos o que fazer com a água da chuva: há quem se recolha, quem se deixe levar por sua diluviana corrente, quem se afogue, quem pega em sua vasilha e a encha com tal bênção, ciente de que essa será a solução para os dias em que o sol queimar (pois, ainda que chova, sabe que um sol tórrido acabará por despontar). Assim, se colocássemos dois caminhantes em diferentes estágios de aprendizagem (ou em moldagem de carácter, se preferirem) num qualquer troço da estrada existencial, no seio de uma noite sem lua, desprovidos de qualquer fonte de luz, como ambos reagiriam? Se um deles teria de esboçar uma enorme passada na sua aprendizagem, o outro deveria apenas aplicar todas as artes que lhe haviam sido transmitidas, aquelas que suas cicatrizes não o deixariam olvidar. Provavelmente, o primeiro iria questionar todas as bases do seu pensamento e da sua crença, inquietando-se, imergindo numa treva obscura e aterrorizante; o segundo saberia, no mais profundo de si, que em breve o sol nasceria e que toda aquela escuridão se cessaria. Assim agiria quem encontra, entende e confia em sua luz interior. Mas todos caminhamos rumo ao mesmo destino (ainda que tal intenção pareça ser inconsciente), pelo que, no devido momento, chegará a recompensa pelo esforço empreendido na tentativa de aplicação e na assimilação dos meios.

Todo o desafio que nos assalta de rompante acontece numa altura propícia, seja para nos testar ou para nos fornecer a preparação necessária para as etapas vindouras. Cada etapa é essencial ao nosso desenvolvimento e fortalecimento; ainda que nos sintamos incapazes, cada desafio ocorre somente no momento em que nós possuímos a arte de o ultrapassar! Somos guiados por uma Força estranha e bela, o Sopro do Caminho – ou uma outra qualquer nomenclatura que lhe queiram atribuir –, uma Força que, mesmo desacreditada, reside também em nós, criando as hipóteses de cada ocorrência para que a Consciência possa ditar as suas direcções. Sejam elas quais forem, todo o dia será propício a uma auto-análise, olharmo-nos bem e nos entendermos ainda melhor; se nos mantivermos abertos, serenos entre as mudanças, toda a diversidade florescerá diante do nosso Ser. Hoje somos mais sabedores do que Ontem fomos, mas não tanto como Amanhã ainda seremos – se nos predispusermos a tal, o eco destas palavras acabará por se concretizar.


Pedro Belo Clara.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Entre Tempos

É uma acção associada às reacções de quem trilha o Caminho, essa de nos abrigarmos em tempos de reclusão... No fundo, até ansiamos pela actuação, pelo empreendimento, mas compreendemos os seus destrutivos efeitos no momento e logo abandonamos tal pensamento. Restará, assim, adoptar uma passividade nem sempre apaziguadora ou tranquilizante, como ideal comportamento a apresentar. No entanto, relembro a importância de se saber usar esse comportamento pois, como em tudo, o ideal será sempre atingir um ponto de equilíbrio. Se formos passivos em tempos de nítida acção, em nada iremos contribuir para o incremento da nossa realização. Assim, se tivermos em conta os impulsos que ecoam no interior de cada um de nós, escutaremos a nossa íntima sabedoria e certamente que tomaremos a decisão mais adequada ao momento que estamos a vivênciar.

No fundo, como é fácil de confirmar, não apresento – até agora – nada de novo; todos estes pontos foram já abordados e explicados em entradas anteriores. Por isso, se estiveram sempre atentos, saberão perfeitamente a que me refiro. Além disso, saberão também que tais tempos de passividade surgem, geralmente, após tempos de cultivo (retomando um termo anteriormente utilizado) – por isso, quando implementados, os deveremos deixar crescer e fortificar. Podemos regar a nossa querida plantação, mas existirão dias em que, súbita, a chuva cairá por si mesma. Rega ou zelo em demasia conduzem ao mesmo caminho: a ruína da nossa plantação. Mas o que poderá ser feito enquanto se aguarda o natural desenvolvimento das sementes plantadas? Foi precisamente a partir dessa pergunta que nasceu o presente texto. Abordámos já os dois tipos de comportamento possível, impressos em sua dualidade, mas torna-se importante referir o espaço que sempre subsiste entre esses dois tempos: o de acção e o de passividade.

É claro que as opções são sempre múltiplas. No entanto, em jeito de condensação de conteúdos, volto a evocar a metáfora (ou até alegoria, se preferirem) da plantação: o que poderá ser feito entre o tempo do cultivo e o tempo da espera pela colheita? Se nos deparássemos com tal cenário, certamente que continuaríamos a cuidar de nossas sementes, regando-as de quando em vez, ajudando-as a crescer e a tornarem-se fortes, arrancando as ervas daninhas e as demais ameaças, até constatarmos a formação do mais belo dos frutos. Pois bem, todas as hipóteses antes referidas serão possíveis neste caso. O facto de preenchermos o nosso espaço “entre tempos” com a reafirmação de todas as nossas intenções, com a fortificação de nossa fé ou confiança (em nossas capacidades, nas de terceiros ou em uma Força suprema e transcendental), contribui para o sereno cumprir das etapas vindouras. Podemos ponderar e definir novas estratégias, confiando sempre no valor e no sucesso das mesmas. Tudo isso será como que uma prece que zelará pela nossa plantação, o incremento dos necessários cuidados ao seu crescimento. Em suma, estaremos a preparar-nos em carácter para os dias que estão ainda por nascer. Tais actos poderão parecer vagos, pois seus efeitos manifestam-se de uma forma interna e demorada. Mas, uma vez cristalizados, tornam-se os pilares de nossa Alma.

Além de tudo isso, e como todo o Homem, apesar de valoroso em termos individuais, vive em comunhão com seus semelhantes, é igualmente importante escutar e fazer quebrar nossas dúvidas junto daqueles que não as possuem. Nós detemos as respostas às nossas perguntas, nós decidimos o nosso próprio rumo; mas, por vezes, quando a neblina se torna densa demais, podemos aliviar o peso de nossas dúvidas nos conselhos que outros companheiros de viagem terão para nos dar. É, na realidade, uma aprendizagem conjunta entre viajantes que se vêem cruzados no mesmo rumo, embora (e volto-o a repetir, pois é importante sublinhar-mos este aspecto) em nossas decisões residam as direcções que num futuro tomaremos. Quem caminha sabe que as respostas do Caminho podem muito bem se manifestar através das palavras de um(a) outro(a) companheiro(a), alguém que como todos nós também sorri, chora, ama, sofre e indaga. Estranhamente, ao constatarmos tal ocorrência, sentimo-nos menos sós.


Pedro Belo Clara.


quarta-feira, 27 de julho de 2011

Por um trilho que finda

Quando nos encontramos perto do término de um antigo percurso, pacientemente trilhando as suas últimas milhas, é usual recordar cada uma das coloridas partículas de emoções e de situações vividas: as paisagens contempladas, as dores sentidas e os sorrisos partilhados. Por vezes, com uma ânsia total em rapidamente romper com o que já ficou para trás, tendemos a assumir uma postura intranquila (ainda que celeremente nos apercebamos de tal erro) perante as conclusivas ocorrências. Mas todo o caminho existe para ser trilhado até ao fim, até ao momento em que dá lugar a uma nova direcção ou rumo. Assim, um ansioso agir poderá mesmo traduzir-se num indesejado prolongamento do troço final, um adiamento do desfecho tão esperado. Contudo, se uma antagónica posição for adoptada, certamente que manteremos a mente fiel e concentrada nas últimas curvas daquele trilho, para que a derradeira empresa, em esforço final, não se despiste. E isto sem enumerar as várias belezas que proliferam por um trilho que finda, algo que só quem o percorre, aliviado de seu fardo, consegue entender e sentir.

Poderá ser árduo contender para preservar a suavidade de trato e de acção, especialmente quando os encantos da actividade nos seduzem tentadoramente, mas quem – de entre aqueles que se dizem caminhantes – não sentiu já tais obstáculos? O avanço surge a partir da queda que é analisada e compreendida; a complexidade apenas reforça a firmeza de nossos cajados! Desejamos o grande, é claro, mas será apenas por empreender e cultivar o pequeno que ele será alcançado, sempre com a mesma vontade, crença e dignidade, tal como sucedeu em etapas anteriores. Que tal segredo possa se manter em nós, desperto e pronto a ser utilizado no momento mais propício, até que novos ventos comecem a soprar – eis o que desejo a todos os que despontam pela linha da clarividência.


Pedro Belo Clara.



quarta-feira, 20 de julho de 2011

Consciência de acção

Em determinados momentos, mediante talvez as influências do tempo que se abate sobre cada caminhante, encontramo-nos tão densos e imersos em situações banais e em crises de dúvida (que, no fundo, em nada importam), que nem nos apercebemos do verdadeiro desenrolar dos acontecimentos. Contudo, se perseverarmos e nos mantivermos firmes e fiéis à nossa verdade, cientes daquilo que se desenrola em torno de nós mesmos, tornamo-nos conscientes de cada ocorrência verificada e, em certos casos, até as conseguimos antever.

Em suma, assumimos uma postura de vigia, isto é, tornamo-nos vigilantes, faróis para nós próprios e para os demais, alguém que, de fora, observa e compreende as desenvolturas de um mundo. Isto poderá parecer paradoxal, estranho até, mas, ao assumirmos uma postura passiva, conseguimos obter uma visão e uma leitura mais alargada e imparcial sobre cada uma das questões que nos tocam particularmente. Este desmembramento de envolvência ou, se preferirem, desapego emocional, é sempre árduo de materializar, ainda para mais quando certos aspectos parecem estar ligados à nossa própria Alma. Não se refere aqui a adopção de um racionalismo extremo, nem a abolição da emoção (ambos são necessários, como é obvio; um equilíbrio só se atinge quando os opostos de harmonizam), mas sim uma postura eficaz de acção, uma consciencialização do seu conceito e objectivo. É impossível existir bonança em tempos de tempestade, pelo que estaremos somente a abrir caminho às férteis condições de actuação. A nossa sabedoria interior só assim se conseguirá expressar e, em quietude, se fazer escutar… e será ela a nossa luz, o punhal que dilacerá o negro manto da ignorância. Como se compreende, não me refiro a nenhum desapego, distanciamento, desamor ou negação de auxílio, apenas a uma forma de retiro (breve) para que a solução possa emergir.

Ao atingir e posteriormente manter este nível, despertos e conscientes, conseguiremos obter análises concretas e fidedignas sobre cada assunto, bem como a resposta que mais se adequará a cada acontecimento. Para além disso, fazemos com que nossa visão se erga, deixando os recortes das pedras da estrada para se fixar nos amplos horizontes das paisagens. Quer isto dizer que nos tornamos imunes ao sujo jogo que governa o mundo social que nos envolve, pleno de manipulações, embustes e falsidades. Não mais seremos o subserviente membro do rebanho, mas alguém que reclama por seus direitos e se predispõem a cumprir verdadeiramente os seus deveres. Se uma máquina operar para um fim comum e benéfico, é certo que todas as peças terão o maior prazer em auxiliá-la. Mas descobrir uma consciência e utilizá-la, não sem antes a instruir, é como criar um jardim: cada flor será plantada, à vez, no canteiro certo, até que este fique preenchido. Então, passaremos a plantar num outro, até que fique completo; e assim sucessivamente. No momento mais propício, libertarão, todas elas, o seu perfume para a atmosfera.

Conscientes e serenos conseguiremos reclamar para nós próprios a Verdade e, ao fazê-lo, ajudaremos outros “companheiros de viagem” a encontrar a sua luz (assim como nós encontrámos a nossa) e a assumir um lugar de destaque na demanda pela conquista de um renovado estado de consciência.


Pedro Belo Clara.