sexta-feira, 30 de abril de 2021

MEDITAÇÕES LXII

 

Os olhos vêem e reconhecem,
mas em verdade apenas aquilo
que na memória foi incrustado.
 
Um olhar limpo não julga,
não pinta, não reinventa;
um olhar limpo é justo,
pois somente observa.
 
Quem vê tem em si
um profundo silêncio.
Dessa quietude serena
um sol irrompe: compreensão.
 
As bocas caíram no hábito
de dizer vida daquilo que a mente
analisa e considera em tal molde,
mas o que é vivo não pode ser ideia.
 
Remove o filtro da mentira.
Só em sossego verás
uma maravilha em movimento,
uma dança sem coreografia
acontecendo diante
dum imenso repouso.
 
Não diluas a atenção
no que vem e vai
– as formas embriagam
ao mínimo toque.
 
Caminha para dentro,
vai fundo, aquieta-te e observa:
descobre o trono onde se senta
aquele que tudo vê.









(Fonte: freepik.com)

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

MEDITAÇÕES LXI

 

Retorna ao que és.

Tanto tempo vagueaste
por ruas e vielas enlameadas,
com o infortúnio da fome e da sede
pesando num coração tingido
– sem descobrir que sempre
tiveste cheio o alforge.

Tanto corpo gasto em fantasia,
na loucura do erro elementar
– e mesmo assim, por graça
duma sabedoria maior,
a semente da verdade não deixou
de abrir fendas em sua cápsula.

Serena o passo, a caminhada
já se estende além-memória.
Escuta o tambor do peito
lançando ritmos e estações,
deixa o silêncio crescer em ti.

Por tantas horas o espectáculo
das imagens e das sensações
teve o seu lugar de destaque.
Tão doce veneno injectado
em inocentes projecções,
tão colorido engodo de tolos!

Ainda assim, como saber a verdade
sem primeiro conhecer a mentira?

Repara: todo o brilho que emitia
da tua atenção se alimentou.

Larga tudo o que pesa,
abre os olhos ao que é.
No louco rodopio do mundo,
descobre o que permanece
e aí ergue a tua cabana.

O primeiro passo é agora,
o primeiro gesto é teu.

Quem se confunde com o corpo
só conhece sofrimento;
quem repousa no coração
sorri, sereno e livre,
no êxtase feliz do verdadeiro lar.








(Fonte: videvo.net)

segunda-feira, 18 de maio de 2020

MEDITAÇÕES LX



Vem agora para este lugar
onde harpas, flautas e cítaras
tecem melodias sem que mão
alguma lhes toque;

vem agora para este lugar
onde o tempo não subsiste,
onde nada foi nem será;

vem agora para este lugar
onde todas as aparições
são vistas à luz invicta
dum olhar claro e limpo;

vem agora para este lugar
onde a separação é entendida
como a primeira mentira;

vem agora para este lugar
além de luz e sombra,
sem forma ou cor, onde todo
o movimento acontece
no seio dum supremo repouso.

Vem agora escutar as harpas,
as flautas e as cítaras,
toma a esta mesa o teu devido lugar
– por demasiado tempo vagueaste
no deserto de ti mesmo.

Vem agora, irmão meu,
entra no silêncio onde comungam
os filhos dum só pai,
os filhos que se descobrem
no próprio pai.










(Fonte: universal.org)


quarta-feira, 29 de abril de 2020

MEDITAÇÕES LIX



A primeira forma de ingratidão:
o desejo.

Só anseia quem em carência vive,
só deseja quem pobre se sente.
À matéria estende a mão e a enlaça
a experiência, que fuga não permite,
mas experimentar somente significa
o desfrutar da feliz ocasião.

Prova e saboreia sem apego.
Quem se apega anseia possuir,
e é pela posse que admite
a pobreza em que julga viver.

Tudo é vazio em si e deveras precioso
para ser desperdiçado em fantasias.
Não acalentes culpas, porém
– até os de passada mais tranquila
tropeçarão enquanto o coração
permitir que nuvens o cubram.

Chegará a hora em que tudo se clareará,
como em noite de lua roliça:

todo o desejo, toda a partilha imposta,
toda a fala puxada em esforço
somente fora uma desesperada fuga
à quietude mais profunda.

Quando te reconheceres no que és,
mais fundo do que julgavas ser,
saberás a fuga tola: ninguém se aparta
da realidade de si mesmo.










(Imagem de: positivelife.ie)


quarta-feira, 15 de abril de 2020

MEDITAÇÕES LVIII



A quietude é uma água curiosa:
presente mesmo antes
da primeira batida,
corre por vidas inteiras
sem que mão alguma
se digne a levá-la aos lábios.

Corre por anos sem fim indiferente,
mas ansiosa por acolher o filho
que se extraviou, só em horas
de funda solidão o seu secreto nome
fazendo escutar – e tem a música
dos oceanos imensos, o sabor
das flores da montanha, a graça
da luz sobre o orvalho da manhã.

Por qualquer estranha benesse,
uma gota, uma só gota
em negro instante subitamente
vem repousar em teus lábios.
O gosto, tão estranho que parece
te arrancar ao mundo conhecido,
calcorreia o seu caminho em ti,
fundo e mais fundo, caminhando
até fincar raiz e lançar aos céus
um pequeno rebento
de estranha, insondável coisa.

Então terá sido tarde demais:
rios nascem nos oceanos,
árvores crescem das nuvens,
pássaros caminham sobre a terra.

Por quantos anos andaste sedento
sem o suspeitar? Alegre-se o coração,
pois lembra que nunca abandonou
a casa que em silêncio procurava.







(Foto de: umairhaque.com)


sexta-feira, 4 de outubro de 2019

MEDITAÇÕES LVII



Vem com a voracidade das fomes,
com a sofreguidão das sedes;
um pequeno grão que ao primeiro sopro
se faz incêndio: o pensamento sem vigia.

Por que tal é assim? Vira para dentro
os olhos, mergulha fundo no mistério.

Descobres quem julgas ser?
Repara: a imagem é flor de sonho
que tem raiz em histórias contadas,
em experiências saboreadas,
em nomes que outros em sua ilusão
colaram à porta da tua eterna morada.

Por desconheceres quem és
aceitaste a mentira, tomaste por verdade
a bonita fantasia que te teceram.

Mergulha fundo no mistério. As ondas
chegam e vão: só o oceano permanece.
Como podes ser quem parte
se testemunhas a partida em si?

Quando descobrires o perfume original
sabê-lo-ás em cada coisa que vês e tocas,
manifestações duma coisa só.

Como pode haver vontade ou arbítrio
quando não existe um ente
separado do que é?

Os raios de um só sol não se expurgam
da mesma luz – a maravilha das maravilhas.











quinta-feira, 9 de maio de 2019

MEDITAÇÕES LVI


Nenhuma palavra importa,
mesmo estas que acabas de ler.

Se foram canteiros donde brotaram
flores, ao alto erguendo-se
no contar dos dias, tal apenas se deu
para que se lhes seguisses a direcção.


Quem sabe o que poderias lembrar
firmando a linha do gesto?

Ou, se profundo foi o teu olhar,
talvez em cada uma visses
uma mão gentil apontando
ao mais íntimo âmago de ti.

Mas sobre as palavras, as palavras
como coisa em si, nenhuma importa.
Somente o silêncio que nasce
naquele que atento as escuta.









(Fonte: vivianeferreira.com)